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O exame das contas partidárias em tempo real: um passo em direção à racionalidade

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Por Fabrício Medeiros
Atualização:
Fabrício Medeiros. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No início de fevereiro, poucos dias após a eleição para a Mesa da Câmara dos Deputados, foi instituído, no âmbito daquela Casa Legislativa, um Grupo de Trabalho formado por 15 (quinze) parlamentares com a missão de "avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento e sistematização da legislação eleitoral e processual eleitoral brasileira".

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A oportuna e alvissareira providência certamente contribuirá para modernizar a legislação eleitoral brasileira, que há muito reclama por alterações que superem os retalhos legislativos preocupados, entre outros pontos, com o tamanho e a disposição dos adesivos com propagandas eleitorais, com a posição dos cavaletes nas calçadas, com o volume que reverbera do mini trio e outras filigranas absolutamente irrelevantes para a consolidação da democracia brasileira.

Conquanto precipuamente voltado ao estudo da temática eleitoral, é importante que o Grupo de Trabalho possa também refletir sobre o aprofundamento de outras questões que flertam diretamente com o fortalecimento do sistema partidário brasileiro e com a transparência do financiamento da nossa democracia. E o fato é que não parece haver dúvidas de que a temática do processo de prestação de contas dos partidos políticos se enquadra no debate de fortalecimento democrático.

Nesse contexto, um observador atento ao cenário partidário no Brasil, mais precisamente ao exame das contas partidárias, deve estranhar o grande número de desaprovação das contas dos partidos políticos e dos candidatos, bem como o não incomum julgamento dessas contas pela Justiça Eleitoral na undécima hora para evitar a ocorrência de prescrição quinquenal.

Não se pode ignorar que, com o incremento do financiamento público da democracia brasileiro - ocorrido após a declaração de inconstitucionalidade da doação de pessoa jurídica - as contas partidárias passaram a ostentar um maior grau de complexidade, seja pelas vultosas quantias de recursos públicos movimentadas, seja pela aplicação vinculada desses recursos por dicção legal ou por obrigação proveniente de decisões judiciais.

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Para além dessa complexidade, as agremiações político-partidárias ainda se deparam, ano após ano, com exigências cada vez mais surpreendentes e inovadoras emanadas dos setores contábeis dos Tribunais Eleitorais. Exigências essas, acresça-se, relacionadas, em sua grande maioria, a fatos praticados em exercícios financeiros já executados.

A desaprovação das contas partidárias anuais é, diante desse cenário caótico e de muita insegurança jurídica, uma questão de tempo. Sendo certo que não se pode olvidar que a regra não deve ser a desaprovação por si só das contas, mas sim o aperfeiçoamento da sua análise.

Passou da hora, portanto, de refletirmos abertamente sobre um modelo que possa emprestar racionalidade às prestações de contas dos partidos políticos (e por que não também às dos próprios candidatos?) sem, no entanto, descuidar do imperativo de transparência que deve presidir a gestão de recursos de origem pública.

É exatamente essa a proposta do presente texto: contribuir para a formação de algo visando à construção, pelo Poder Legislativo, de um regime jurídico que possa fortalecer a democracia brasileira pelo incremento da transparência da gestão de recursos públicos, mas sem preconceber negativamente os partidos políticos brasileiros.

Para tanto, duas premissas constitucionais são postas: (i) o princípio republicano com o seu sucedâneo de transparência imposto a todo e qualquer gestor de recursos de natureza pública; (ii) a competência da Justiça Eleitoral para julgar as contas partidárias e eleitorais (inciso III do art. 17 da CF).

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Atento a essas duas premissas, proponho uma reflexão em torno da criação de uma modalidade de prestação de contas partidária com auditoria em tempo real, que poderia ou não ser adotado pelos partidos políticos, no lídimo exercício da sua autonomia constitucionalmente garantida. Logo, as agremiações que não manifestassem o interesse de migrar para o sistema de prestação de contas em tempo real seguiriam submetidas ao regime atualmente existente de encaminhamento de suas contas para análise e julgamento da Justiça Eleitoral.

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Segundo esse novo modelo, os órgãos partidários nacionais, regionais ou municipais poderiam contratar instituições privadas de auditoria e de conformidade para acompanhar e fiscalizar, pari passu, a execução financeira anual sob a responsabilidade do partido político. Nessa hipótese, a prestação de contas do órgão do partido político, a ser apresentada à Justiça Eleitoral, seria acompanhada do balanço contábil do exercício findo, bem como de relatório elaborado pela instituição auditora e conformidade que reflita a real movimentação financeira os dispêndios realizados e, se for o caso, os recursos aplicados em campanhas eleitorais.

Nesse sentido, poderíamos imaginar, a fim de ampliar a isenção no controle dessas contas, que incumbira à Justiça Eleitoral, a exemplo do que já faz em relação às empresas que exploram o crowdfunding[1], o cadastramento prévio de empresas especializadas na prestação dos serviços de auditoria e de conformidade para serem contratadas pelos partidos políticos.

Adotado o regime auditado em tempo real, o processo de prestação de contas dos órgãos partidários teria natureza administrativa e seria submetido a julgamento pela Justiça Eleitoral, assegurada a ampla defesa. Neste caso, as contas somente seriam desaprovadas na hipótese de o relatório de auditoria apresentado não refletir a real movimentação financeira da agremiação.

Penso, ainda, que, nesse novel modelo, à instituição privada especializada em auditoria e conformidade contratada pelo partido político deveria ser oportunizada a participação no processo de prestação de contas, na condição de assistente, a fim de que possa se posicionar sobre os eventuais apontamentos do órgão técnico da Justiça Eleitoral.

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Já no que diz respeito à aplicação de sanções aos partidos políticos em caso de rejeição das contas, sem prejuízo das demais punições judiciais cabíveis, o modelo aqui proposto traria a possibilidade de aplicação de multa, devendo a Justiça Eleitoral, no caso concreto, observar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Nesse caso, a sanção haveria de ser parceladamente descontada das quotas dos Fundo Partidário a que faz jus o órgão do partido político.

Pois bem, se a razão de ser do exame das contas partidárias é verificar a escorreita aplicação de recursos públicos e identificar os reais financiadores da democracia, o sistema aqui proposto pode ser um bom ponto de partida para que, ao lado de outras contribuições, possamos superar o atual regime que gera, quase que automaticamente, a desaprovação de contas dos partidos políticos e vem servindo de elemento de desgaste e enfraquecimento do sistema partidário brasileiro.

Em substituição ao atual regime, portanto, cabe aos cidadãos refletirem sobre a adoção de um modelo que permita o acompanhamento simultâneo da gestão das contas partidárias fazendo cessar, quase que imediatamente, a prática de irregularidades, minimizando eventuais riscos à própria democracia representativa.

*Fabrício Medeiros é mestre em Direito, professor universitário e advogado

[1] Lei nº 9.504/97, art. 23, § 4º, inciso IV, alínea "a".

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