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O édito das armas

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Por Ricardo Toledo Santos Filho
Atualização:
Acervo Pessoal  

A Constituição da República contempla duas reservas de iniciativa legislativa ao presidente da República, a medida provisória (MP) e o decreto.

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A primeira deve se restringir a matéria de 'relevância e urgência' (art. 62 da Constituição), requisitos nem sempre atendidos, enquanto o decreto tem sobretudo a finalidade de regulamentar leis já em vigor 'para sua fiel execução' (art. 84, IV).

Se a MP deve ser chancelada pelo Congresso Nacional, que pode tanto modificá-la como rejeitá-la, o decreto tem força de lei, independente da chancela do Parlamento.

Nesse desvão legislativo, o Executivo reúne o poder de expedir éditos de cunho imperial que o Diário Oficial divulga à moda dos antigos pregoeiros das monarquias.

O recente decreto n.º 9.785, editado pelo presidente Jair Bolsonaro em 7 de maio para 'regulamentar' o porte de arma de fogo e levemente alterado em novo decreto publicado em 22 do mesmo mês, vem a ser um desses diplomas - com a particularidade de, como na fábula de Apeles, o sapateiro ir além das sandálias.

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Mais que regulamentar, no caso a lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o decreto em apreço viola a lei conhecida como Estatuto do Desarmamento ao introduzir dispositivos que ele não contempla e, até se vê conflitar.

No estatuto, a mens legis foi restringir o cadastro, registro, posse, porte e comercialização de armas de fogo e de munição, mas o decreto, ao contrário, os amplia e facilita.

Se a regra do Estatuto do Desarmamento é tornar 'proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional' (Art. 6.º), fixando exceções sobretudo para agentes públicos, o decreto atual amplia exageradamente a exceção, estendendo-a a uma multidão de civis.

Nessa nova legião armada incluem-se instrutores de tiro ou armeiros, proprietários de clubes de tiro, caçadores, caminhoneiros, parlamentares (de senador a vereador), prefeitos, residentes em área rural, advogados, jornalistas do setor policial, funcionários de empresas de segurança privada e de transporte de valores.

A classe dos agentes públicos foi generosamente estendida, entre outros, a oficiais de justiça, guardas de trânsito, conselheiros tutelares e, agora na atualização, ao guarda portuário.

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Nada menos que 19,1 milhões de pessoas, segundo cálculo do Instituto Sou da Paz, poderão ter a posse e até desfilar com reluzentes armas, inclusive as que são consideradas restritas às forças de segurança, a exemplo de pistolas de calibres .40 e 9 mm.

É como se toda a população de Minas Gerais pudesse pôr um revólver na cinta.

O decreto é particularmente excrescente quando libera a posse e o porte ao titular do registro do armamento que resida em 'imóvel rural'.

Segundo o último Censo do IBGE, em 2017 o Brasil tinha 5,07 milhões de 'estabelecimentos agropecuários' - uma fonte de abastecimento à rapina da bandidagem.

Armas tanto afastam quanto atraem assaltantes. Com certeza muitas serão surripiadas pela marginalidade - como aconteceu a um certo capitão em sua moto em plena rua...

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Salta aos olhos que a medida seja mais uma aproximação ao modo de vida americano - tendência que parece entranhar-se no Direito brasileiro, haja vista a lei da 'delação premiada' e o projeto de lei, encaminhado ao Congresso pelo Ministério da Justiça, que institui entre nós a tal plea bargain, aquele acordo que tanto vimos em filmes de Hollywood pelo qual um acusado, mesmo sendo inocente, aceita uma pena menor para não correr o risco de levar uma mais grave se for a julgamento.

Hão de ser sopesadas, no entanto, as diferenças culturais e o nível de violência vigente nos dois países.

Apesar de serem uma vez e meia a população do Brasil (110 milhões de pessoas a mais), os americanos se matam menos com armas de fogo que nós - 37,2 mil mortes lá contra 43,3 mil aqui, em 2014, segundo pesquisa de Global Burden Disease. Naquele país, as crianças ganham um rifle 'no berçário', embora viceje forte movimento pró-desarmamento, ao qual aderiu até o ex-presidente Barack Obama, mas os brasileiros temos outra visão.

Se atende a uma parte do eleitorado do presidente, ao qual ele acenou com a liberação dos 'berros', como dizem, tão cultuados em seu ambiente familiar, o decreto ofende a vontade da maioria da população.

Pesquisa do Datafolha, de dezembro do ano passado, revelou que 61% dos brasileiros são contra a liberação das armas e 68% se opõem a facilitar o acesso a elas. Mais uma vez prevalece, ao menos por enquanto, o édito imperial.

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*Ricardo Toledo Santos Filho é advogado criminalista e vice-presidente da Seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil

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