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O direito dos concessionários frente ao reposicionamento mercadológico da Ford

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Por Gustavo Prazeres e Daniel Masello
Atualização:
Gustavo Prazeres e Daniel Masello. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No dia 11 de janeiro do ano em curso, a Ford anunciou amplo processo de reposicionamento no mercado. A montadora optou por abandonar o modelo de produção diversificada e em grande escala para focar no desenvolvimento de automóveis de maior valor agregado, investidos de tecnologia e destinados a segmento seleto de consumo.

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O encerramento das atividades industriais no país e a descontinuação de toda a linha popular de veículos, medidas mais imediatas e já divulgadas, pautaram as discussões e estimularam análises em torno de desdobramentos jurídicos e econômicos de variados matizes: arrecadação fiscal, direitos trabalhistas, situação dos antigos proprietários de automóveis da marca e até mesmo aspectos locais, como o impacto nos preços imobiliários nas regiões fabris, assumiram destaque.

Em meio a tantos e tão relevantes temas, remanesceu à margem a discussão acerca dos direitos e prerrogativas titularizados pelos integrantes da rede de concessionárias Ford. Estes agentes, que abraçaram e contribuíram para consolidar a marca automotiva no Brasil, investindo tempo, esforço e significativos recursos para garantir a distribuição e assistência técnica dos veículos em todo o território nacional, foram surpreendidos pela abrupta mudança de rumos da fabricante.

Em que pese a montadora, assim como qualquer outro agente econômico, tenha plena autonomia para definir e revisitar os rumos do próprio negócio, ao fazê-lo haverá de respeitar as obrigações contratuais anteriormente assumidas, preservando-lhes a equivalência, quando possível ante a nova realidade, ou assumindo a integral responsabilidade pelos ônus e prejuízos impostos aos parceiros.

Está é uma inferência inaugural, decorrente de princípios e preceitos basilares do sistema normativo pátrio, dentre os quais destaca-se a cláusula geral da boa-fé objetiva, a exigir, de todo e qualquer contratante, máxima lealdade e transparência em suas avenças. Ao promover a modificação abrupta e unilateral das bases objetivas da relação negocial, a Ford incorre em infração contratual, por quebra de confiança, e atrai para si a responsabilidade pela reparação dos danos derivados.

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Sucede, contudo, o questionamento: como apurar o prejuízo? O que, na prática, os concessionários podem esperar e exigir da montadora? A resposta não é simples e, adverte-se, depende de análise minuciosa e específica, que só pode ser efetivamente delineada no caso a caso. De toda sorte, as linhas gerais podem ser traçadas a partir das regras do direito comum e da legislação específica do segmento.

O vínculo entre fabricantes e distribuidoras automotivas é peculiar, e, apesar de geralmente envolver agentes com certa capacidade econômico-financeira, termina por produzir relações caracterizadas pela subordinação e dependência dos concessionários em relação às montadoras. No afã de delimitar barreiras, resguardando mínima margem de simetria nesta espécie de negócio, é que foi concebida a Lei Federal n°. 6.729/79, também conhecida como Lei Renato Ferrari.

Dentre outros aspectos, a lei da categoria contempla fórmula para assegurar a indenização de concessionários na hipótese de rescisão do vínculo pela fabricante. Estabelece, em seu art. 24, que, em casos de contrato por prazo de indeterminado, o concedente haverá de: (i) readquirir o estoque de veículos automotores, implementos e componentes novos, pelo preço de venda ao consumidor, vigente na data da rescisão contratual; (ii) efetuar a compra dos equipamentos, máquinas, ferramental e instalações à concessão, pelo preço de mercado correspondente ao estado em que se encontrarem; (iii) arcar com perdas e danos, à razão de quatro por cento do faturamento projetado para um período correspondente à soma de uma parte fixa de dezoito meses e uma variável de três meses por quinquênio de vigência da concessão, devendo a projeção tomar por base o valor corrigido monetariamente do faturamento de bens e serviços concernentes a concessão, que o concessionário tiver realizado nos dois anos anteriores à rescisão; (iv) satisfazer outras reparações eventualmente ajustadas entre o produtor e sua rede de distribuição.

No artigo subsequente, determina a observância dos mesmos critérios para as relações em que o contrato seja por prazo de determinado, ressalvando que: (i) as perdas e danos devem ser calculadas sobre o faturamento projetado até o término do contrato e, se a concessão não tiver alcançado dois anos de vigência, a projeção tomará por base o faturamento até então realizado; (ii) as reparações eventualmente ajustadas entre o produtor e sua rede de distribuição devem ser satisfeitas até o termo final do contrato rescindido.

Apesar de assentar base inicial para apurar o quantum indenizatório, os critérios estabelecidos na Lei Ferrari não são definitivos nem exaustivos. A matéria, apesar de contemplar divergência jurisprudencial, já foi enfrentada no âmbito do STJ. Na primeira ocasião, ocorrida no ano de 1993, ao julgar o REsp 10391/PR, a Quarta Turma reconheceu, à unanimidade, que a apuração dos prejuízos previstos nos seus arts. 24 e 25 não afastariam o direito à indenização também "de outros prejuízos, resultantes da atuação da concedente", e que desafiam "reparação integral, na forma do direito comum".

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O entendimento prevaleceu também no recente julgamento do REsp 1.714.339/BA. A Quarta Turma reiterou o entendimento anterior de que a Lei Ferrari não delimita a indenização; fixa tão somente um mínimo indenizatório, em proteção aos concessionários. Eventual prejuízo sobressalente, desde que devidamente comprovado, haverá de ser integralmente reparado. No caso em concreto, o concessionário teve reconhecido o direito a ser indenizado por fundo de comércio, lucros cessantes e investimentos feitos no negócio, todos apurados em perícia.

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Neste último julgamento, contudo, foi aberta divergência. A Min. Maria Isabel Gallotti - no que foi acompanhada também pelo Min. Antonio Carlos Ferreira - perfilou o entendimento de que, ao estabelecer um microssistema próprio e autônomo, a Lei Ferrari terminaria por afastar a incidência da legislação comum. Na linha do voto vencido, os parâmetros delineados pela legislação específica corresponderiam a uma liquidação prévia e cogente de danos. A título de ilustração, o voto divergente fixou: "Pouco importa que, in concreto, os prejuízos do concessionário tenham sido maiores do que o ressarcimento autorizado pela lei especial. Também podem ter sido menores. Em qualquer caso o que prevalece é a tarifação legal. Sempre que, por motivo particular ponderado pelo legislador, se estabelece uma tarifação obrigatória para a infração legal ou contratual, o montante efetivo do prejuízo não é levado em conta, nem para aumentar, nem para reduzir a indenização."

A matéria, como se percebe, é sensível; demanda apuração técnica e precisa dos prejuízos efetivamente experimentados e envolve dissenso jurisprudencial. O direito à integral reparação, corolário da garantia constitucional da propriedade, aponta para a pertinência de que os concessionários persigam, seja em uma mesa de negociação, seja em uma demanda judicial, a recomposição de todas as perdas experimentadas, sem se limitar àqueles itens fixados na Lei Federal n°. 6.729/79.

*Gustavo Prazeres, advogado legal master no Escritório MoselloLima Advocacia, professor da Faculdade Baiana de Direito, mestre em Direito e doutorando pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

*Daniel Masello, advogado líder e estratégico no Escritório MoselloLima Advocacia, especializado em Direito Civil e Processo Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV)

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