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O dia seguinte da aprovação da Lei do Superendividamento

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Por Thais Matallo Cordeiro
Atualização:

Thais Matallo Cordeiro. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

De acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2020[1], os três últimos anos da economia brasileira estão ancorados na demanda interna, em especial no consumo das famílias brasileiras, representando 65% na composição do Produto Interno Bruto (PIB). Hoje, o consumo das famílias é o grande motor da nossa economia e medidas que possibilitem este consumo de forma consciente devem ser incentivadas.

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Segundo o Mapa da Inadimplência no Brasil, divulgado pela Serasa em maio de 2021[2], mais de 60 milhões de brasileiros enfrentam a situação de endividamento, sendo que os superendividados já somam, aproximadamente, 30 milhões.

Neste contexto, recentemente, o presidente Jair Bolsonaro aprovou a Lei n. 14.181 de 01 de julho de 2021, conhecida como Lei do Superendividamento, que alterou o Código de Defesa do Consumidor e Estatuto do Idoso para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o devido tratamento dos superendividados.

A aprovação da legislação veio em boa hora. O incentivo ao mercado de consumo de forma conscientemente deve ocorrer, inclusive, como forma de fomento à economia do País, tão abalada nos últimos anos. Para tanto, o tratamento adequado do consumidor superendividado é medida que se impõe, já sendo, inclusive, uma realidade em diversos países ao redor do mundo.

De acordo com a lei, o superendividamento deve ser entendido como a impossibilidade manifesta do consumidor pagar a totalidade das suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial.

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Nesse sentido, encontra-se o primeiro desafio a ser enfrentado após a aprovação da lei.

Deixou para regulamentação posterior a conceituação do que seria o mínimo existencial. Até lá, a identificação do mínimo existencial deverá ocorrer caso a caso. A definição matemática e cartesiana deste conceito parece não ser a mais adequada na medida em que as realidades fáticas podem interferir no seu conceito, mas o balizamento de critérios mínimos para sua identificação é necessário e urgente, sob pena de incorrermos em injustiças como concessão dos benefícios a pessoas que sequer devem ser consideradas superendividadas.

Sob pena de ir na contramão daquilo a que se propõe, a legislação do superendividamento não pode e não deve ser utilizada como um incentivo à inadimplência do consumidor, tampouco o perdão de suas dívidas. A legislação precisa ser interpretada ao fim a que se destina, qual seja, alcançar a prevenção e o tratamento adequado do consumidor superendividado. A utilização indistinta da lei poderá trazer prejuízos aos próprios consumidores que terão como consequência natural dificuldade de concessão de crédito pelas empresas, além de alta taxa de juros.

Visando implementar o consumo consciente no mercado brasileiro, a legislação trouxe inúmeras previsões importantes, dentre elas a educação financeira dos consumidores. Embora a lei do superendividamento a preveja como direito e garantia ao consumidor, é importante a reflexão de como operacionalizar tal medida na prática.

Muito embora a lei acertadamente tenha previsto a necessidade da educação financeira dos consumidores, o debate sobre o tema é de fundamental importância para que se identifique a melhor forma de viabilizar o alcance deste importante objetivo, sob pena de atuarmos na solução do problema (negociação das dívidas do consumidor), deixando de lado a ação sobre a sua causa (o endividamento do consumidor). A não atuação na causa do problema poderá gerar um impacto sensível à própria economia do país, com efeito reverso às expectativas da lei.

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De acordo com a legislação, por solicitação do superendividado, o Poder Judiciário poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vista a realização de audiência conciliatória, com a presença de todos os credores de dívidas. Na oportunidade, o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento e, não havendo êxito na conciliação, poderá ser apresentado um plano judicial de pagamento compulsório, o que poderá ser benéfico aos consumidores.

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Este benefício, contudo, poderá gerar uma avalanche de novas demandas perante o Poder Judiciário. Não podemos esquecer que, hoje, estima-se que mais de 30 milhões de brasileiros estejam superendividados. Se o problema do superendividamento não for resolvido de forma extrajudicial, a probabilidade é que esses consumidores busquem o Poder Judiciário na tentativa de resolvê-los.

Segundo dados mais recentes do relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil gastou em 2019 R$ 100,2 bilhões com o Poder Judiciário, valor equivalente a 1,5% do seu Produto Interno Bruto (PIB), representando um dos países que mais gasta com o Poder Judiciário no mundo. O número já é impactante e um acréscimo de demandas judiciais para solução de problemas de superendividamento não é algo que se almeja.

O aumento de demandas judiciais vai absolutamente na contramão de todas as iniciativas nos últimos tempos. O fomento a meios alternativos de soluções de conflito e conciliação extrajudiciais são medidas de sucesso que têm apresentado resultados efetivos a todas as partes envolvidas em uma relação de consumo. Autoridades de defesa dos consumidores, empresas e os próprios consumidores têm acertadamente (e com muito êxito) se esforçado para que soluções extrajudiciais aconteçam.

Por isso, a atuação na causa raiz do problema do superendividamento é necessária e urgente, sob pena do Poder Judiciário ser ainda mais demandado, gerando consequências indesejáveis aos consumidores e, também, à economia do nosso país.

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Assim, para não ofuscar o brilhantismo da lei e, ainda, visando alcançar seus louváveis e necessários objetivos, é fundamental que o dia seguinte à sua aprovação seja tão estruturado e debatido quanto todos os esforços que envolveram sua elaboração e aprovação. As relações de consumo sairão fortalecidas e auxiliarão a economia do nosso país que, mais do que nunca, precisa de ajuda.

*Thais Matallo Cordeiro é sócia de Relações de Consumo do Machado Meyer

[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-03/consumo-das-familias-e-grande-motor-da-economia-diz-ibge#

[2] https://www.serasa.com.br/assets/cms/2021/Mapa-de-Inadimple%CC%82ncia-no-Brasil.pdf

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