Denise Fincato e Caroline de Melo Lima*
05 de maio de 2020 | 11h30
Denise Fincato e Caroline de Melo Lima. FOTOS: ARQUIVO PESSOAL
A pandemia covid-19, doença causada pelo coronavírus SARS-COV2 que possui alta capacidade de transmissão, lança desafios às empresas, impondo a adoção de medidas preventivas e precaucionais no meio ambiente de trabalho, com vistas à contenção do avanço da doença e à necessidade de contribuir com as autoridades neste período de emergência de saúde pública.
Direito do presidente ou dever da Presidência? A proteção da intimidade versus o interesse público
A Lei n. 13.979/2020 estabelece as diretrizes que deverão ser observadas no enfrentamento deste período de crise epidêmica internacional. Dentre as medidas ali previstas, o artigo 5º, inciso I dispõe que toda pessoa colaborará com as autoridades sanitárias na comunicação imediata de possíveis contatos com agentes infecciosos do coronavírus. O artigo 6º, § 1º desta Lei refere que é obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública, inclusive, pessoas jurídicas de direito privado, sobre a identificação de pessoas infectadas, quando os dados forem solicitados por autoridade sanitária. Ressalta o § 2º do artigo 6º que, entretanto, será resguardado o direito ao sigilo das informações pessoais.
No âmbito das relações de trabalho, questiona-se como deverão as organizações empresariais proceder diante da identificação de um trabalhador infectado por coronavírus. Deverão as empresas informar os colaboradores que determinado colega foi afastado do trabalho por ter contraído covid-19? No mesmo sentido, o trabalhador que contrair a doença, ou que apresentar sintomas que indiquem ser coronavírus, tem a obrigação de informar o seu empregador?
Esses temas são de extrema relevância no cenário atual e devem fazer parte das discussões que permeiam o que se convencionou chamar por “Direito do Trabalho de Emergência”, em referência às normas e entendimentos surgidos neste período de pandemia e calamidade. É importante destacar que dados relativos à saúde são considerados “dados sensíveis”, de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que deveria entrar em vigor em agosto de 2020, mas que teve sua vigência prorrogada pela Medida Provisória nº 959, publicada pelo Governo Federal em 29/04/2020, que postergou a vacatio legis da Lei para 03 de maio de 2021. Ressalta-se que também tramita o Projeto de Lei n. 1.179/2020, que pretende postergar a vigência da LGPD para janeiro de 2021.
Entretanto, não estando em vigor a LGPD, como as empresas e os trabalhadores deverão proceder diante das situações acima expostas? No âmbito europeu, está em vigor o Regulamento Europeu de Proteção de Dados, General Data Protection Regulation (GDPR), e diversos países têm se manifestado a respeito do tratamento de dados pessoais relacionados à saúde no ambiente laboral.
Sabe-se que o Regulamento Europeu prevê no seu artigo 88, de forma específica, a proteção de dados pessoais no âmbito das relações de trabalho. Sabe-se, ainda, que o direito estrangeiro será fonte do Direito do Trabalho nacional em caso de lacuna desse (art. 8º caput da CLT). Pois, em seu artigo 6º, nº 1, alínea “d”, a GDPR prevê que o tratamento de dados pessoais será lícito se for necessário para a defesa de interesses vitais do titular dos dados ou de outra pessoa singular. O artigo 9º, nº 2, alínea “h” dispõe que será lícito o tratamento de dados pessoais se o tratamento for necessário para efeitos de medicina preventiva ou do trabalho, para a avaliação da capacidade de trabalho do empregado. Na alínea “i” do referido artigo, há a previsão de que será lícito o tratamento se for necessário por motivos de interesse público no domínio da saúde pública, tais como a proteção contra ameaças transfronteiriças graves para a saúde.
O Considerando nº 46 do GDPR refere que alguns tipos de tratamento de dados envolvem tanto interesses públicos quanto interesses vitais do titular dos dados, como por exemplo, se o tratamento for necessário para fins humanitários, incluindo o monitoramento de epidemias e da sua propagação, ou em situações de emergência humanitária. E, por fim, o Considerando nº 54 dispõe que o tratamento de categorias especiais de dados pessoais (como, por exemplo, dados sobre a saúde do titular, que são de natureza sensível) pode ser necessário por razões de interesse público nos domínios da saúde pública, sem o consentimento do titular dos dados.
Na Itália, país extremamente afetado pela pandemia, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (Garante per la protezione dei dati personali)[1] instituiu alguns direcionamentos sobre como as empresas e os trabalhadores deverão proceder no ambiente laboral. A Autoridade italiana orienta empresas e trabalhadores no sentido de ser obrigação do trabalhador relatar ao empregador qualquer situação de perigo para a saúde e a segurança no local de trabalho. Nesse contexto, o empregador deve facilitar os procedimentos para que os trabalhadores possam comunicar que contraíram a doença, ou que possuem os sintomas, ou ainda, que tiveram contato com alguém que apresentava os sintomas de covid-19, através da criação de canais de comunicação dedicados a este momento de pandemia.
Na Espanha, em cumprimento às obrigações no campo do direito do trabalho e da segurança e proteção social, o relatório da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Espanhola (Agencia Española de Protección de Datos)[2] recorda a obrigação dos empregadores e de seus funcionários na prevenção de riscos ocupacionais, cabendo a cada trabalhador garantir sua própria segurança e saúde no trabalho, mas também, a segurança daqueles que podem ser afetados por sua atividade profissional (ou por sua presença). Isso significa que os funcionários devem informar o seu empregador em caso de suspeita de contato com o vírus, a fim de proteger, além de sua própria saúde, a de outros trabalhadores no local de trabalho, permitindo que sejam tomadas as medidas apropriadas.
Em Portugal, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD)[3] publicou orientação no sentido de que toda coleta de informação relativa à saúde ou à vida privada do trabalhador (se, por exemplo, esteve em contato com pessoas contaminadas) só está legitimada se for realizada, direta e exclusivamente, pelo profissional de medicina do trabalho, tendo em vista a adoção dos procedimentos adequados a salvaguardar a saúde dos próprios trabalhadores e de terceiros.
Na França, a Comissão de Proteção de Dados (Commission Nationale de l’Informatique et des Libertés)[4] previu orientações sobre ser dever do empregado usar todos os meios para preservar a sua saúde e de terceiros, informando o empregador a respeito de eventual suspeita de contato com o vírus. O dever do empregado em prestar informações sobre sua saúde e segurança está inscrito, inclusive, no Código de Trabalho Francês, conforme ressaltado pela Comissão de Proteção de Dados Francesa.
Pelas orientações proferidas pelas autoridades de proteção de dados dos países citados, conclui-se que o tratamento de dados pessoais nas relações de trabalho, em tempos de pandemia, não tem sido homogêneo na Europa. E isto porque há a necessidade de leitura do Regulamento Europeu de Proteção de Dados em consonância com a legislação trabalhista específica de cada país. Mas, sem dúvidas, as orientações desses países servem de guia para a realidade brasileira.
No Brasil, conforme já exposto, embora existente a LGPD ainda não está em vigor. Entretanto, pela interpretação do artigo 225 da Constituição Federal, depreende-se que é dever de todos a preservação da qualidade de vida e do meio ambiente de trabalho sadio e equilibrado. Além disso, no artigo 196 da Constituição Federal há a previsão do direito fundamental à saúde, que possui titularidade complexa, pois individual e, simultaneamente, coletiva (devendo ser interpretado, principalmente, como direito coletivo).
O precitado artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê em seu caput que as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, utilizando-se de diversas outras fontes, entre estas o direito comparado, sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. No artigo 154 da CLT, há a disposição de que a observância, em todos os locais de trabalho, do disposto no Capítulo sobre Segurança e Medicina do Trabalho, não desobriga as empresas do cumprimento de outras disposições que, com relação à matéria, sejam incluídas em regulamentos sanitários dos Estados ou Municípios em que se situem os respectivos estabelecimentos, bem como daquelas oriundas de instrumentos coletivos de trabalho.
Além disso, prevê o artigo 157, incisos I e II da CLT que as empresas devem cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho e instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais. Já seu artigo 158, parágrafo único, alínea “a” ressalta que constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada à observância das instruções expedidas pelo empregador.
Alguns estados e municípios têm editado decretos e portarias regulamentando medidas para a contenção da covid-19, obrigando as empresas no agir positivo, preventivo e precaucional, tecendo orientações sobre o dever de controle do vírus no ambiente laboral. Daí que a inobservância às orientações proferidas pela empresa – em cumprimento de normas de caráter público-sanitário – pode levar o empregado a ser punido pelo cometimento de ato faltoso, conforme acima exposto.
Sabe-se que, além das disposições constitucionais, das previsões da CLT e das normas estaduais e municipais editadas nesse período de pandemia, há um dever de boa-fé objetiva que rege a relação contratual de trabalho. A boa-fé objetiva pode restringir direitos em função dos deveres de cooperação e proteção, que possuem como características o cuidado, a segurança, o esclarecimento, o dever de informação, colaboração e cooperação. Deveres de solidariedade, lealdade e cuidado recíproco devem se sobressair neste momento.
Tem-se, portanto, que tanto os empregadores quanto os trabalhadores têm o dever de informar a situação da sua saúde durante o período transitório da pandemia covid-19. Nesta “nova normalidade”, o vírus impõe a supremacia do interesse público, do direito fundamental à saúde e ao meio ambiente de trabalho sadio e equilibrado. O Estado está, portanto, autorizado a flexibilizar os direitos individuais em prol da presença do inequívoco interesse público, que é incapaz de ser atendido por outros mecanismos menos gravosos, em virtude da circunstância excepcional e devidamente motivada pelo avanço da pandemia no Brasil.
Para tanto, algumas recomendações são relevantes e devem auxiliar no enfrentamento prático dessas questões no ambiente laboral:
O combate à disseminação do vírus é o caminho que deve ser seguido por todos, no setor público e no setor privado. Entretanto, a prevalência do interesse público não permite o descuido com os direitos e garantias individuais que, dentro do possível e razoável, deverão ser observados, em conformidade com a legislação e com as recomendações acima expostas.
A luta contra a crise sanitária, política e econômica provocada pela pandemia de Covid-19 exige o fortalecimento do princípio da solidariedade, que deve ser garantido pela ordem jurídica. Nas palavras de Norbert Elias, no livro “A sociedade dos indivíduos”, em dias como os presentes, o individualismo deve ceder espaço à compreensão de que o indivíduo, como tal, não existe. O indivíduo “co-existe”, pois a sua relação com o outro passa a ser avaliada como constitutiva de sua existência, não havendo espaço para considerar o indivíduo como uma “célula auto-suficiente”.[5]
E é assim que o interesse privado, em prol da defesa e da proteção do direito à vida, se relativiza e cede diante do interesse comum. Nenhum direito fundamental é absoluto e a comunicação da infecção por coronavírus, para além de esvaziar brados em defesa da intimidade subjetiva, passa a ser entendida como uma obrigação individual e, ao mesmo tempo, um direito coletivo de caráter difuso.
*Denise Fincato, pós-doutora em Direito do Trabalho pela Universidad Complutense de Madrid. Visiting Researcher na Università degli studi de Parma. Professora pesquisadora no PPGD da PUCRS. Acadêmica titular da cadeira nº 34 na Academia Sul-Rio-Grandense de Direito do Trabalho. Advogada e consultora
*Caroline de Melo Lima, mestranda em Direito pela PUCRS. Especialista em Compliance pela Faculdade de Direito de Coimbra. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Unisinos. Advogada e consultora
[1] ITÁLIA. Garante per la protezione dei dati personali. Disponível em: https://www.garanteprivacy.it/web/guest/home/docweb/-/docweb-display/docweb/9282117>. Acesso em: abril de 2020.
[2] ESPANHA. Agencia Española de Protección de Datos. Disponível em: https://www.aepd.es/es/prensa-y-comunicacion/notas-de-prensa/la-aepd-publica-un-informe-sobre-los-tratamientos-de-datos-en>. Acesso em: abril de 2020.
[3] PORTUGAL. Comissão Nacional de Proteção de Dados. Disponível em: https://www.cnpd.pt/>. Acesso em: abril de 2020.
[4] FRANÇA. Commission Nationale de l’Informatique et des Libertés. Disponível em: https://www.cnil.fr/fr/coronavirus-covid-19-les-rappels-de-la-cnil-sur-la-collecte-de-donnees-personnelles>. Acesso em: abril de 2020.
[5] ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 129.
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