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O desenho institucional dos acordos de leniência é mais difícil do que parece

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Por Raquel de Mattos Pimenta
Atualização:
Raquel de Mattos Pimenta. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Na última sexta-feira, o jornal O Globo noticiou que estaria pronta a regulamentação dos Acordos de Leniência da Lei Anticorrupção promulgada em 2013. A minuta que circula exclui a participação do Ministério Público (MP) da negociação dos Acordos de Leniência, a favor de concentrar poderes na Controladoria-Geral da União (CGU), com apoio da Advocacia-Geral da União (AGU). Busca-se resolver um problema de competência para tornar mais claro às empresas quem é autoridade competente para negociar. Todo desenho institucional gera escolhas imperfeitas. Cabe aos pesquisadores de políticas anticorrupção apontar os ganhos, perdas e desafios de cada uma delas. Neste texto, propomos uma reflexão sobre a participação do Ministério Público em Acordos de Leniência. Parecem existir dois pontos mais sensíveis no debate: a conexão entre responsabilização de pessoas físicas e pessoas jurídicas e a existência de corrupção sistêmica no Brasil.

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Acordos de leniência são instrumentos nos quais empresas entregam provas de ilícitos à autoridade em troca de redução de sua sanção. Ao longo dos últimos seis anos, as autoridades também passaram a exigir valores a título de reparação do dano e programas de integridade, obrigações para prevenir que os ilícitos voltem a acontecer. Ministério Público Federal (MPF), CGU e AGU já assinaram dezenas de acordos que permitiram a obtenção de provas e a recuperação de ativos.

A Lei Anticorrupção estrutura um modelo em que a responsabilidade da empresa é apartada da responsabilidade dos indivíduos. A responsabilização de pessoas jurídicas por atos lesivos à administração pública é administrativa. Na esfera federal, a responsável pela sua aplicação e por negociar acordos de leniência é a CGU.

No entanto, a política anticorrupção é formada por uma complexa estrutura normativa que possui interligações. A Lei Anticorrupção se sobrepõe a outras normas que também punem pessoas jurídicas e as pessoas físicas que a integram. Para a pessoa jurídica, há a Lei de Improbidade Administrativa, a lei antitruste, dentre outras. Para a pessoa física, além da responsabilidade administrativa e civil, há, também a legislação criminal. A Lei Anticorrupção diz que todas essas esferas são independentes. Esse emaranhado sobreposto permitiu a atuação simultânea e descoordenada de diversas autoridades, criando multiplicidade na hora de negociar acordos de leniência.

Ainda em 2015, no contexto da Lava Jato, o MPF celebrou seu primeiro acordo de leniência. Naquele momento, havia uma série de investigações criminais de indivíduos que, pouco a pouco, alcançou as empresas. O MPF tinha dupla competência: na frente criminal (pessoas físicas) e em algumas cíveis, como a Improbidade Administrativa. Nenhum outro órgão no Brasil possui essa mesma característica. Tentar ser parte dos acordos de leniência foi uma interpretação alargada e arriscada, porque a Lei não previa sua participação, o que poderia levar à anulação de provas e devolução de recursos obtidos com acordos. O primeiro acordo foi pequeno e testou essa interpretação. Foi mantido. Depois dele, o MPF passou a celebrar acordos cada vez maiores, com maior grau de complexidade.

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O que esses acordos têm em comum é a reaproximação entre responsabilização de pessoa física e pessoa jurídica que havia sido tão bem demarcada na Lei Anticorrupção. Além da dupla atuação do MP, ao menos dois outros motivos explicam a convergência. O primeiro seria a estrutura de governança corporativa no Brasil que, sendo fortemente baseada em famílias, liga o destino da empresa ao destino de seus controladores. O segundo é o fato de que o tipo de corrupção revelado não é pontual, mas estruturante das relações público-privadas no país.

Se a corrupção é estruturante da forma de se fazer negócios em um dado setor, a probabilidade de os controladores estarem envolvidos é maior. Não existiria um Departamento de Operações Estruturadas, por exemplo, sem anuência da cúpula da Odebrecht. O controle da Odebrecht, e de tantas empresas brasileiras, não está disperso na Bolsa de Valores, mas é detido por um pequeno grupo de indivíduos, uma família. Neste cenário, decresce a probabilidade de a empresa apresentar provas que a salve, mas incriminem seu controlador.

Por outro lado, se a corrupção é sistêmica em um mercado, não basta apresentar um contrato feito a partir de uma transação corrupta. Isso seria inefetivo para a autoridade porque, afinal, avançaria pouco a investigação, e também para a empresa, porque ela não poderia limpar as gavetas e recomeçar suas atividades. A tendência, neste cenário, é alargar o escopo dos acordos de leniência. O ponto-limite para esse alargamento é um debate importante, mas a realidade é que os acordos de leniência no Brasil se tornaram mega acordos. Eles abarcam muitas condutas, projetos e recursos. Isso significa que a empresa precisa do apoio de seus colaboradores para encontrar quais contratos foram problemáticos, como os pagamentos foram feitos, quando as reuniões foram realizadas, como os recursos foram transferidos. Os indivíduos não ajudariam a empresa se isso significasse colocar-se em risco. Por isso, esses acordos estendem, até certo ponto, suas proteções a pessoas físicas que colaboram com a empresa. Novamente, aponta-se uma convergência, ainda que parcial, entre responsabilizações.

Em um cenário descoordenado e conflituoso, a CGU e a AGU também passaram a celebrar acordos de leniência. Em certos aspectos, elas aperfeiçoaram o uso do instrumento. Já que acordos servem não só para conseguir evidência, mas também para reparar o dano causado pela corrupção, a CGU, com apoio da AGU, tornou a metodologia de cálculo da reparação de danos muito mais clara e previsível do que o MPF havia feito até então.

A CGU era competente por Lei e seus acordos tiveram ganhos importantes. No entanto, a proposta de (re)concentrar o poder de celebração dos acordos enseja desafios. O primeiro é decidir o que fazer com a convergência entre responsabilizações de pessoas físicas e pessoas jurídicas. É possível alterá-la, mas é preciso realinhar os incentivos para que a possibilidade de acordo permaneça atrativa. O segundo é como garantir a independência da CGU e da AGU na negociação. Ambos são órgãos sérios e preparados. Porém, fica a dúvida sobre o que acontecerá se a cúpula do Poder Executivo não quiser uma investigação ou que ela chegue a pessoas específicas. Para os acordos de leniência, a possível interferência na negociação aumenta a chance do instrumento simplesmente ser descartado (e, portanto, suas provas e seus montantes recuperados não existirem) ou, então, de um acordo que seja excessivamente benevolente com uma empresa ou, ao contrário, excessivamente rígido, para punir quem falou. É preciso abrir a caixa de ferramentas de direito público para aumentar a autonomia desses órgãos, por exemplo, pensando em carreiras próprias ou, ainda, em mandatos de atuação de forma desconectada do mandato do Poder Executivo, assim como agências reguladoras independentes. É certo que o MP também pode enfrentar esses desafios. No entanto, sua roupagem institucional, desvinculada dos demais poderes, diminui a probabilidade de bloqueio perene de suas ações. Para todas essas instituições, é preciso que a sociedade vigie os guardiões para que eles não se desviem de suas funções.

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Nos últimos anos, o processo de negociar acordos de leniência foi truncado. Contra essa multiplicidade de autoridades, empresas pediam um "balcão único". A expressão, ainda que bem-intencionada, pouco diz sobre vantagens e desvantagens de cada desenho institucional. Ter uma política anticorrupção séria e perene exige debates maduros e pormenorizados sobre suas escolhas.

*Raquel de Mattos Pimenta, pesquisadora de pós-doutorado Global Fellow na FGV Direito SP, doutora em direito econômico pela USP, foi pesquisadora Fulbright na Yale Law School

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