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O desamparo da vítima pelo sistema de Justiça: o caso Mariana Ferrer

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Por Celeste Leite dos Santos
Atualização:

No dia 3.11.2020 o Brasil se indignou com o tratamento atribuído a vítima MARINA FERRER pelos atores do sistema de justiça, expondo importante fratura sistêmica do sistema penal: a ausência de políticas criminais estratégicas que combatam o risco da vitimização. Disso dessume-se três graves problemas que a sociedade e o Estado devem enfrentar (art. 144 da CF).

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O primeiro é a inadequação do atual regramento legal que destina um único dispositivo a vítima, equiparando-a a mera testemunha (art. 201 do CPP). A relação binária estabelecida entre Estado-Ofensor permite concluir que ela nada mais é do que um instrumento. Tal distopia perpetua a violência, com aumento exponencial das cifras ocultas. Dentro dessa lógica, o silêncio se sobrepõe ao risco de se submeter a tratamento ofensivo e degradante (vitimização secundária). Em contraposição as violações diárias a dignidade da pessoa humana, o Projeto de Lei n. 3890-2020 prevê rol mínimo de direitos a serem assegurados as vítimas, destacando-se: o direito a tutela judicial efetiva, igualdade, direito de ser informada de seus direitos, assistência gratuita, direito a oitiva especializada, direito a prova, direito a reparação por meio de indenização, direito a assistência e apoio, comunicação e direito de defesa. Às vítimas de crimes sexuais é garantido tratamento humanizado, reconhecendo sua condição de especialmente vulnerável.

O segundo consiste no exercício abusivo do direito de defesa, com devastação da vida íntima e privada das vítimas. Longe de ser instrumento de contenção de arbítrios estatais, a ferramenta processual, se destina a garantir apenas uma das partes da relação processual, tornando-a suscetível a manipulações e distorções. Dentre os direitos previstos no estatuto da vítima projetado estão o direito de proteção, participação, informação, direito de acesso a serviços de apoio a vítima e, direito a proteções específicas durante a fase de investigação do crime.

O terceiro se refere a ausência de desenvolvimento de estratégias de desvitimização. Para tanto devem ser garantidos direitos fundamentais não processuais que permitam a restauração de sua dignidade, honra, integridade física e moral, resguardo a sua intimidade pessoal e familiar, respeito a sua própria imagem e acesso a práticas restaurativas.

O acolhimento às vítimas deve ser realizado com o fortalecimento de redes formais e informais de apoio em todos os âmbitos da vida: familiar, escolar, laborativa e espiritual. Para tanto, há que ser construído consenso mínimo e aplicadas técnicas preventivas à vitimização, com enfoque no bem-estar da comunidade. Tais estratégias permitem o combate ao ciclo de violência em nossa sociedade (prevenção primária). Inexistindo sentimento de comunidade, banaliza-se a violência, já que o Estado é incapaz de chamar a si todas as demandas sociais advindas de negligência das etapas precedentes, contentando-se com a verdade formal (prevenção a vitimização terciária).

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Atualmente, o projeto se encontra em fase de admissão de coautorias, já tendo sido subscrito por 34 deputados federais. Espera-se que a atribuição da qualidade de sujeito de direitos a vítimas contribua para a construção de sociedade livre, justa e solidária, com respeito à dignidade da pessoa humana de todos.

*Celeste Leite dos Santos, promotora de Justiça. Gestora do Projeto Avarc do MPSP, doutora pela USP, mestre pela PUC-SP e membro do MPD

BIBLIOGRAFIA

ALVES, Schirlei. Caso Marina Ferrer e o inédito estupro culposo. Disponível em: https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/. Acesso em 07.11.2020.

FALCÃO, RUI el al. Projeto de lei n. 3890-2020. Institui o Estatuto da Vítima. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2258347. Acesso em 07.11.2020.

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SANTOS, Celeste Leite dos. Injusto Penal e os Direitos das Vítimas de Crimes. Porto: Editorial Juruá, 2020.

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