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'O brasileiro parece ter um fetiche por reformas, apoia até as que evidentemente pioram as instituições', diz desembargador

Ao se aposentar esta semana com 31 anos de magistratura, Rodrigo Collaço, ex-presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, relata rotina da toga e diz que lembranças são parte do 'patrimônio sentimental'

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Por Redação
Atualização:

O desembargador Rodrigo Collaço foi presidente da AMB e do TJSC. Foto: Julia Knabem / Divulgação

Depois de dedicar 31 anos à magistratura, o desembargador Rodrigo Collaço encerra formalmente a carreira nesta semana. O requerimento de aposentadoria foi aprovado na última quarta-feira, 2, em sessão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

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O último cargo ocupado por Collaço, que dirigiu a Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) anos atrás, foi justamente o de presidente do Judiciário catarinense no biênio 2018/2019. "Fui muito feliz, apesar do trabalho árduo", pondera.

Em entrevista ao Estadão, o desembargador diz que a magistratura 'vale muito a pena', mas não ignora os problemas da Justiça - a exemplo do excesso de possibilidades recursais e da judicialização da política, segundo ele.

O magistrado também critica a reforma administrativa proposta pelo governo. "O brasileiro parece ter um fetiche por reformas. Apoia até as que evidentemente pioram as instituições, para ficarmos no caso concreto do juiz de garantias. É a típica reforma que só atrapalha e torna ainda mais complexo o funcionamento da Justiça. Sinceramente eu acho que as instituições precisam de um pouco de paz para trabalhar", defende.

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Collaço dedicou 31 anos à magistratura catarinense. Foto: Julia Knabem / Divulgação

Leia a entrevista completa:

ESTADÃO: O que mudou na Justiça nesses 31 anos que o sr. ingressou na magistratura? Rodrigo Collaço: Quase tudo mudou. A Constituição de 1988 prometeu uma série de melhorias na vida dos brasileiros. Saúde e educação para todos, acesso amplo à Justiça, liberdades individuais mais bem asseguradas. Tudo o que o Estado não conseguiu prover espontaneamente, por meio de suas políticas públicas, acabou virando demanda judicial. O número de processos explodiu. Tivemos que nos adaptar a um novo papel e formato de trabalho com o carro em movimento. Não foi fácil. Depois ainda veio a judicialização da política, que permanece até hoje, trazendo o Poder Judiciário para um embate no qual deveríamos intervir de forma apenas suplementar. O juiz hoje tem que garantir direito de massas e mediar os conflitos políticos cada vez mais severos. Não é pouco.

ESTADÃO: Qual a principal causa da morosidade da Justiça? Rodrigo Collaço: A principal dela é o excesso de possibilidades recursais. Temos, verdadeiramente, quatro instâncias. Mesmo dentro das regras do jogo é muito fácil protelar o resultado final de um julgamento. Temos também uma questão cultural. Partimos da premissa de que uma decisão sempre pode ser aperfeiçoada por um novo julgamento, o que pode até ser verdadeiro, mas despreza o fator tempo. Uma decisão tida como adequada e perfeita, 20 anos depois do início da ação, é preferível a uma boa decisão que encerra, para o bem ou para o mal, uma disputa judicial em quatro anos? É uma boa pergunta a ser feita às partes.

ESTADÃO: O governo enviou ao Congresso uma proposta de reforma administrativa. O sr. avalia que o Judiciário também deve ter a sua reforma? Rodrigo Collaço: O brasileiro parece ter um fetiche por reformas. Apoia até as que evidentemente pioram as instituições, para ficarmos no caso concreto do juiz de garantias. É a típica reforma que só atrapalha e torna ainda mais complexo o funcionamento da Justiça. Sinceramente eu acho que as instituições precisam de um pouco de paz para trabalhar. É possível melhorar o rendimento extraindo tudo de positivo que já dispomos no nosso modelo constitucional e legal. Em Santa Catarina, no ano de 2019, assumimos o primeiro lugar em produtividade calculada por juiz entre os tribunais de porte médio, como é o nosso caso. Não precisamos de nenhuma reforma constitucional e legal para chegar a tanto. O Poder Judiciário, incluído o Ministério Público, a OAB, a Defensoria e a polícia judiciária, criaram um pacto silencioso para melhoria de performance. E melhoramos. Tivemos tranquilidade para trabalhar sem estar a todo tempo gastando energia em discussões sobre modelo X ou Y.

ESTADÃO: O que o sr. mudaria na Justiça? Rodrigo Collaço: Estabeleceria, como regra, o trânsito em julgado das decisões na segunda instância. Daria ao Supremo Tribunal Federal os contornos de uma Corte exclusivamente constitucional, afastada das decisões sem relevância e repercussão geral. Investiria em tecnologia para atacar os processos repetidos, que tramitam aos milhões espalhados por todo o Brasil. Redefiniria o papel do CNJ, para tirá-lo do varejo do controle das decisões administrativas dos tribunais da federação, devolvendo-lhe o papel de formulador de uma política judiciária de longo prazo.

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O desembargador Rodrigo Collaço: "O Brasil precisa de uma excelente Justiça". Foto: Julia Knabem / Divulgação

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ESTADÃO: Que lembranças o sr. leva da sua carreira para a aposentadoria? Rodrigo Collaço: Lembranças de felicidade e de plena realização. Fui presidente da associação de classe do meu Estado. Bem por isto, pude conhecer todas as comarcas da minha terra e partilhar ombro a ombro as dificuldades para o exercício da magistratura em Santa Catarina, em tempos de tantas cobranças e incompreensões. Depois meus colegas deram-me o direito de presidir a AMB. Percorri o Brasil e vivenciei a sua magnitude, as suas diferenças e contradições. As condições para o exercício da magistratura, ao longo do território do Brasil, são extremamente diversificadas. Há estados bem aparelhados assim como os há também em situação de penúria. Foi uma experiência única e gratificante. Por último, exerci, ao lado dos meus honrados colegas de diretoria, a presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina em 2018 e 2019. Fui muito feliz, apesar do trabalho árduo. Renovei a minha convicção na qualidade dos juízes e dos servidores do Poder Judiciário catarinense. Recebi muito apoio, muito carinho e realizamos importantes transformações, que repercutiram em uma jurisdição bem prestada. Levo comigo para sempre a ajuda, o apoio e o incentivo que recebi de todos. É inesquecível e faz parte do meu patrimônio sentimental para sempre.

ESTADÃO: Vale a pena ser juiz? O que o sr. diria aos novos juízes. Rodrigo Collaço: Vale muito a pena. Imagine-se o privilégio em ser remunerado para fazer justiça. Quantas profissões podem ter um fim tão nobre? Tornar melhor ou menos difícil a vida das pessoas. Intervir com honestidade de princípio e propósito por uma sociedade melhor. Estudem muito, sejam muito honestos e dedicados. O Brasil precisa de uma excelente Justiça.

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