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O Brasil tem uma dívida colossal com os autistas

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Por Mara Gabrilli
Atualização:
Mara Gabrilli. FOTO: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO Foto: Estadão

Você sabia que a incidência do autismo em crianças é mais comum que a soma dos casos de HIV, câncer e diabetes? Negligenciado no Brasil, o autismo é um distúrbio no desenvolvimento infantil que tem impacto gigantesco na interação social, na comunicação, no aprendizado e na capacidade de adaptação. Embora não tenhamos dados oficiais do IBGE, organizações de atendimento a esse público estimam que tenhamos cerca de 2 milhões de brasileiros com autismo. Muitos sem diagnóstico.

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Falamos de brasileiros esquecidos.

Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, pediatras são treinados para identificar os transtornos do espectro autista até os três anos de idade. Aqui, o diagnóstico é feito, em uma média otimista, até os sete anos de vida.

Em 2012, ainda em meu primeiro mandato como deputada, fui designada relatora do projeto de lei 1361/11, que criou uma Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, legislação que reconhece legalmente o indivíduo com autismo como uma pessoa com deficiência, colocando-a sob o mesmo guarda chuva de direitos ao qual esse público tem acesso.

Durante a relatoria do texto, pude conhecer de muito perto a dura realidade das famílias envolvidas, que me clamavam por celeridade na tramitação do projeto.

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Após alguns meses de discussão pública, apresentamos apenas três emendas para aprimorar o texto original, atendendo assim o clamor de mães e pais que durante a vida inteira só ouviram "nãos!".

Uma das emendas criou sanção administrativa expressa para o gestor escolar ou autoridade competente, em escola regular, que recusar a matrícula da criança com autismo, punindo com multa de três a vinte salários mínimos. Em caso de reincidência, a punição é a perda do cargo.

Apresentamos também uma emenda acrescentando ao Código Penal o art. 136-A, para tipificar a conduta daquele que aplica qualquer forma de castigo corporal, ofensa psicológica, tratamento cruel ou degradante à criança ou adolescente com deficiência física, sensorial, intelectual ou mental, como forma de correção, disciplina, educação ou a qualquer outro pretexto.

O crime pune com detenção de seis meses a dois anos, observadas as agravantes se do fato resultar lesão corporal de natureza grave (reclusão, de dois a quatro anos), ou se resultar a morte (reclusão, de quatro a doze anos). Aprovado pelo Senado ainda em 2012, tal texto foi sancionado pela presidente Dilma Rousseff no mesmo ano, tornando-se a Lei Berenice Piana, nome de uma mãe guerreira e defensora árdua da causa. A regulamentação, no entanto, só veio dois anos depois, após muita pressão desta hoje senadora e de muitas famílias e associações de todo Brasil. Contudo, mesmo com uma legislação legítima, na prática, o Estado brasileiro ainda deve muito.

Na educação, por exemplo, as barreiras enfrentadas pelas famílias crescem a cada dia nas escolas, que descaradamente continuam a negar a matrícula para esses alunos. Quando aceitam, praticam uma falsa inclusão, recebendo o educando, mas negando recursos necessários para seu aprendizado. Falta ferramentas em sala de aula, além de capacitação e amparo para os professores, e, sobretudo, o direito a ter um acompanhante especializado para apoio às atividades de comunicação, interação social, locomoção, alimentação e cuidados pessoais.

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Com objetivo de sanar essa postura do poder público, já reconhecida como crime, na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (13.146/2015), que também relatei na Câmara dos Deputados, reforçamos a defesa do autista, punindo o gestor que recusa ou cancela matrícula, ou ainda que cobra valores adicionais de um aluno com deficiência. Além de multa, a pena prevê 2 a 5 anos de reclusão, podendo ser agravada em 1/3 em casos em que a infração é cometida contra menores de 18 anos. Tal prerrogativa vale para todas as pessoas com autismo no Brasil e seu cumprimento deve ser perseguido por todos nós. Afinal, a inclusão educacional é uma meta que deve ser perseguida e por qualquer sociedade que busque o avanço.

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É profundamente triste presenciamos ainda hoje, cinco anos após a sanção da Lei Berenice Piana, casos envolvendo homicídios e tentativas de suicídio entre famílias de autistas - tamanho desespero e dor causados pela falta de amparo.

No Brasil afora, ainda é comum encontrarmos depósitos humanos onde autistas são abandonados por famílias extremamente vulneráveis. Essas pessoas são enclausuradas em celas e tratadas de forma subumana. Isso ocorre em 2019, quando temos duas legislações robustas que reconhecem os direitos dessas pessoas que são, sim, brasileiros e merecem e devem exercer cidadania.

A Lei Berenice Piana e Lei Brasileira de Inclusão são frutos de uma luta de muitas décadas. São legislações construídas pela sociedade civil, que arregaçou as mangas para mudar realidades esquecidas, olhando para segmentos à margem das políticas públicas. E como relatora de ambas as matérias, muito me entristece e frustra presenciar tamanha negligência do Estado.

Abril, mês em que celebramos o Dia Mundial de Conscientização sobre o autismo, cabe lembrarmos que o Brasil atual discute o futuro de gerações, mas ainda não olha para quem precisa hoje do mínimo existencial para viver.

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*Mara Gabrilli, senadora (PSDB-SP), publicitária, psicóloga, foi secretária da Pessoa com Deficiência da capital paulista e vereadora por São Paulo. Em 1997, após sofrer um acidente de carro que a deixou tetraplégica, fundou uma ONG para apoiar o paradesporto, fomentar pesquisas cientificas e promover a inclusão social em comunidades carentes

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