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O Brasil precisa de energia limpa?

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Por José Virgílio Lopes Enei
Atualização:
José Virgílio Lopes Enei. FOTO: DIVULGAÇÃO  

O Brasil possui uma das maiores reservas energéticas do mundo. Não é o pré-sal, mas o potencial eólico do mar, o chamado "offshore".

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No mundo, a geração offshore já é realidade. Com 7.500 km de litoral, o Brasil tem um dos maiores potenciais do mundo.

O desafio da transmissão é bem conhecido no Brasil e, no caso das offshores, se daria por cabos submarinos. Ainda que houvesse restrição, as eólicas offshore abrem espaço para a produção do hidrogênio verde, combustível altamente eficiente.

Então por que as eólicas offshore ainda não foram implantadas no Brasil?

Entraves burocráticos. Em que pese os esforços deste e de outros governos em prol da desburocratização (vide Lei da Liberdade Econômica), o Brasil ainda sofre com esse mal, e as eólicas offshore são a atual vítima disso.

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Não existe uma lei específica para cada fonte energética. Existem leis gerais sobre a geração e comercialização de energia e as normas que as regulamentam. Diante disso, empreendedores pioneiros confiavam que a legislação geral já lhes indicasse o caminho, ainda que custoso, para a viabilização jurídica de seus projetos, inclusive para a necessária cessão onerosa do direito de uso sobre a área marítima aplicável, a cargo da Secretaria do Patrimônio da União (SPU).

A cessão de uso e a autorização de geração são pressupostos jurídicos para que o empreendedor capte o financiamento e comece a construir e implantar o parque eólico offshore. O período de construção varia de 2 a 5 anos.

Entretanto, em 2018, foi lançada a tese de que haveria uma lacuna na legislação. Foi o que bastou para órgãos públicos como a SPU se sentirem inseguros para prosseguir com a cessão de uso a eólicas, muito embora já o fizessem em outros setores, como aos portos privados.

Pelo menos três projetos de lei foram apresentados ao Congresso para suprir a suposta lacuna, o primeiro em 2018, todos distantes ainda de qualquer consenso.

Em 2020, o Poder Executivo reconheceu que uma lei não seria necessária para destravar as eólicas offshore. Mas entendeu que um decreto seria inevitável. Dos males o menor. O tão esperado Decreto Presidencial 10.946 foi expedido em 25 de janeiro.

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Estaria então superado o impasse burocrático?

O Decreto só entrará em vigor em 15 de junho de 2022. A partir de então, o Ministério de Minas e Energia (MME) e outros órgãos disporão de 180 dias para editar normas complementares sem as quais o Decreto não poderá ser aplicado.

Não veremos, portanto, qualquer cessão de uso para eólicas offshore no ano de 2022.

Mas e a partir de 2022? Ainda é cedo para responder.

Mesmo que, passado o ano eleitoral, não haja uma mudança de orientação do Governo, o Decreto ainda é uma grande incógnita, pois depende das tais normas complementares que lhe regulamentem em nada menos que 17 pontos!

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Por exemplo, a celebração do contrato de cessão de uso dependerá, em cada caso concreto, de manifestação favorável (DIP) de pelo menos 9 órgãos públicos, em procedimento a ser ainda regulamentado.

Em outro ponto ainda mais fundamental, o Decreto parecia estabelecer, acertadamente, que as cessões independentes, a serem efetivadas por iniciativa de interessado privado que assume os custos e riscos de obtenção de todas as DIPs e realização dos demais estudos necessários à implantação do projeto, não dependem de licitação. Porém, conforme divulgado em Webinar oficial recente, a interpretação contrária é a que estaria prevalecendo no MME.

Tal interpretação contraria entendimentos anteriores do próprio Poder Público com base na Lei 9.636 e tratamento dispensado a outros setores, como aos portos privados. Pior: tal interpretação tem o potencial de retardar as eólicas offshore no Brasil em mais uma década!

Nas cessões planejadas, imaginar que o governo disporá de recursos para estudar o potencial energético de todo o litoral brasileiro e dividir o mar em prismas comercialmente viáveis para então oferecê-los em licitação, é uma grande utopia, além de não representar o melhor uso dos recursos públicos. Não é por outra razão que esse modelo não se aplica às PCHs, à geração solar e às eólicas terrestres, e não funcionou para os portos privados ou outros setores que migram para o regime de autorização (como as ferrovias).

Ainda que, na cessão independente, os necessários estudos e DIPs possam em teoria ser providenciados com celeridade pela iniciativa privada, que empreendedor aceitará incorrer em elevados custos, sabendo que, apesar de toda a sua iniciativa, os projetos deverão ser licitados, devendo o empreendedor concorrer em igualdade de condições com qualquer free rider e sem qualquer direito ao reembolso de seus custos?

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A licitação na cessão independente é também inviável porque áreas marítimas para exploração de eólicas offshore não constituem bens escassos no Brasil, não apresentando, portanto, o pressuposto básico de competitividade. Há espaço suficiente para que todos os atuais interessados desenvolvam, na medida de sua capacidade, seus projetos. Basta que o governo impeça que dois ou mais empreendedores possam desenvolver seus projetos na mesma área offshore, o que já é feito pelo SPU (art. 12 da Portaria 404 do SPU).

Se no futuro distante, após o amadurecimento da indústria, essa realidade mudar, então a licitação das áreas escassas remanescentes será exigida.

Licitações muito mais simples, de projetos comprovadamente rentáveis ou mesmo meras relicitações, demandam mais que dois anos para serem estruturadas no Brasil.

Imagine-se então a licitação de um prisma marítimo que não constitui bem escasso, deverá contar com manifestação favorável de uma dezena de órgãos públicos, e que por si só não dará direito à percepção imediata de receitas pelo licitante vencedor, mas tão somente o direito deste, às suas expensas, reunir os demais requisitos para obtenção de autorização de geração perante a ANEEL, para só então participar de leilão de comercialização de energia, sem qualquer garantia de sucesso. Não parece crível. Como em virtualmente todas as demais fontes de geração, a competição entre empreendedores deveria se dar na eficiência de seus projetos e no preço final da energia.

Outra preocupação relevante diz respeito aos projetos que já estavam em tramitação quando da edição do Decreto e deverão ter seus direitos preservados, sob pena de judicialização.

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Tudo isso aponta para um cenário incerto. Mas ainda é possível viabilizar as eólicas offshore no médio prazo, e não para as calendas, desde que o Decreto, que não deveria inovar mas consolidar a legislação vigente, seja interpretado e aplicado de forma coerente e com segurança jurídica.

Em grande medida, basta que as normas complementares recepcionem e consolidem a legislação vigente, a qual já oferece resposta adequada a praticamente todos os pontos pendentes.

Sejamos então otimistas de que a regulamentação seguirá tal caminho e que a burocracia será vencida. Afinal, o Brasil não pode prescindir por mais uma ou duas décadas dessa fantástica fonte de energia.

*José Virgílio Lopes Enei é sócio de infraestrutura do Machado Meyer Advogados

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