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O banditismo não é de hoje

Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO Foto: Estadão

Os brasileiros estamos apavorados com a situação da Amazônia, entregue a infratores desenvoltos. Grilam e incendeiam terras até há pouco providas de exuberante mata nativa; invadem áreas indígenas e continuam a sanha genocida que liquidou milhões dos primeiros habitantes deste país-continente, desde a chegada dos colonizadores.

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Só que a delinquência organizada existe há muito mais tempo no Brasil. Encontro no livro "Heróis e Bandidos", de Gustavo Barroso, acadêmico da Brasileira de Letras, um depoimento candente, sobre "a grande região compreendida entre o Rio São Francisco e o vale do Cariri", cujo meio, mais "a cumplicidade do habitante e a facilidade de fugir dum Estado para outro oferecem guarida segura a todos os criminosos".

O Cariri, onde estive quando da celebração do Jubileu de Ouro sacerdotal de meu Professor Padre Paulo de Sá Gurgel, da ordem salvatoriana, é um oásis no Ceará. Muito verde, muita água. E é célebre por sua história. Foi lá que, por ocasião da República do Equador, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe "guardava as melhores reservas de homens".

Assinala Gustavo Barroso que "os sertões de Triunfo e Pajeú de Flores são os maiores velhacoutos de bandidos em Pernambuco. Todo o grande criminoso matuto passou por ali. Saint-Adolphe, baseado em documentos oficiais, afirma que já em 1750, existiam no Pajeú trezentos e cinquenta criminosos em liberdade!".

As causas do banditismo - que Barroso considerava "o mais importante fenômeno da rude vida do sertão", são complexas. O certo é que existiu o "tipo social do cangaceiro, alma feita de contrastes, anormalidade quase normal na primitiva e estiolada sociedade sertaneja".

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Verdade que os criminosos não são produtos exclusivos da terra brasileira. "Em todos os povos têm existido com denominações diversas. O jagunço não é criminoso por mero acidente de seu caráter; não é criminoso, as mais das vezes, por si próprio. Ele termina uma série de antecedentes os mais variados ou é um elo na seriação de causas as mais diversas".

Propõe-se o escritor que gostava de usar o pseudônimo "João do Norte", a explicar o surgimento dessa legião de infratores. Invoca Letourneau, que na "Fisiologia das Paixões", ensinava que "a necessidade de odiar precedeu de muito a de pensar". Esse mesmo pensador escreveu que "a ferocidade dos sentimentos de certos povos talvez se origine da fome, porque esta torna o homem não um ser sociável, inteligente e mais ou menos moralizado, porém um indivíduo mergulhado na animalidade de onde mui verossimilmente proveio". Se isso fosse inteiramente correto, o Brasil com seus trinta e três milhões de famintos e mais de cento e cinquenta milhões de semelhantes a sofrerem de insegurança alimentar seria um cruento campo de batalha.

A maior parte dos famintos não cede aos apelos do instinto delinquencial. Graças - não à educação, que é pífia e ultrapassada e sequer atinge a totalidade das crianças e jovens - mas às Igrejas Evangélicas. Elas cultivam o bom comportamento e atraíram as mulheres. Sábias gestoras da miséria digna.

A bandidagem do Nordeste é hoje algo mais folclórico, comparada à desenvoltura dos grupos sofisticados que exploram toda espécie de ilicitude na região amazônica. Os que extraem ouro e outros minerais são poderosos. Têm aviões, barcos, centenas de veículos possantes. Recrutam mercenários que não se importam em assassinar indigenista e jornalista inglês, certos da impunidade. O aparelhamento das estruturas de segurança e de tutela ambiental, além do esfacelamento dos órgãos preordenados a proteger o maior patrimônio pátrio, a floresta nativa, a biodiversidade e a água doce, colabora para o clima de "terra arrasada". Em paralelo ao Executivo, o Parlamento não hesita em flexibilizar legislação compatível com a vontade constitucional explicitada pelo formulador do pacto fundante em 1988. São "boiadinhas" e PECs e PLs do veneno, amplamente noticiadas pela mídia espontânea que ainda resiste ao boicote e nada acontece, ressalvado o desalento dos espíritos do bem.

O mais triste é que o banditismo não é a opção preferencial dos excluídos, dos desassistidos da sorte, dos até há pouco invisíveis, que a pandemia escancarou em sua surpreendente miséria. São os abonados, os preferidos do capitalismo selvagem, os vinculados a autoridades venais, aqueles que estão sempre bem com qualquer governo, pois sabem "azeitar" as engrenagens viciadas da política profissional.

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Se o banditismo e a atuação dos bandoleiros não é recente, hoje ela atingiu uma eficiência que sugere a impossibilidade de se voltar a acreditar num país que observe o princípio da moralidade, inserto na Constituição Cidadã tão somente para fins ficcionais e retóricos.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022

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