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O artigo 42 do CPP diante de um fato concreto

Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
O presidente da Câmara, deputado Arhur Lira. Foto: ADRIANO MACHADO/REUTERS

I - O FATO

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Três meses após ter denunciado o deputado Arthur Lira (PP-AL) ao Supremo Tribunal Federal (STF) sob acusação de corrupção passiva, a Procuradoria-Geral da República (PGR) voltou atrás na acusação e pediu ao STF que rejeite a denúncia que o próprio órgão havia apresentado. Aliado do presidente Jair Bolsonaro, Arthur Lira é um dos expoentes do centrão, deputado federal e presidente da Câmara dos Deputados.

Na denúncia apresentada em junho de 2020, a subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo, pessoa de confiança do procurador-geral da República Augusto Aras, escreveu que os elementos de corroboração colhidos pela investigação permitiram comprovar o repasse de propina ao parlamentar:

"Ante o exposto, resta provado, para muito além de meras palavras de colaboradores, que o Deputado Federal ARTHUR CÉSAR PEREIRA DE LIRA recebeu, em duas vezes, indiretamente, vantagem indevida de R$ 1.598.700,00 (um milhão, quinhentos e noventa e oito mil e setecentos reais), em razão da função pública, provenientes de valores desviados de obras da PETROBRAS S/A, pela empresa QUEIROZ GALVÃO".

A PGR apontou uma sofisticada engenharia financeira, por meio do uso de doleiros, dentre eles Alberto Youssef, para gerar os valores desviados da Petrobras e entregá-los em dinheiro vivo a Lira em Brasília. "Em momento posterior, o dinheiro foi fracionado e transferido ao exterior (crime de evasão de divisas) e depois novamente internalizado mediante operações paralelas de câmbio, conhecida por operação dólar-cabo. O valor foi devolvido a ALBERTO YOUSSEF, responsável por entregar o dinheiro em espécie a assessor do parlamentar ARTHUR DE LIRA", escreveu na denúncia.

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Depois, em manifestação protocolada em resposta a um pedido da defesa de Arthur Lira para que o STF rejeitasse a denúncia, Lindôra descontruiu a própria acusação e apontou a existência de "fragilidade probatória". "Não há elementos nos autos que comprovem o elo entre o parlamentar e a Queiroz Galvão", escreveu. Prossegue Lindôra: "Há contradição entre as narrativas apresentadas pelos colaboradores ALBERTO YOUSSEF e CARLOS ALEXANDRE DE SOUZA ROCHA quanto ao destino dos valores ilícitos pagos pela construtora Queiroz Galvão - um pagamento de R$ 1.005.700,00 e outro de R$ 593.000,00, ambos realizados em Brasília nos dias 16 e 17/05/2012. Ademais, não consta da planilha de controle do 'caixa de propina' à disposição do Partido Progressista nenhuma informação de que os referidos valores seriam destinados a ARTHUR CÉSAR PEREIRA LIRA (consta a informação de que o 'dinheiro foi para BSB destinado a políticos do PP / Liderança')". "Tais circunstâncias revelam, por ora, a fragilidade probatória quanto aos fatos imputados ao Deputado Federal ARTHUR LIRA. Por conseguinte, em juízo de parcial retratação, manifesta-se o Ministério Público Federal favoravelmente ao pleito defensivo. a fim de que seja rejeitada a denúncia em relação a ARTHUR CÉSAR PEREIRA LIRA, com fundamento na ausência de justa causa", escreveu Lindôra ao ministro do STF Edson Fachin, relator do caso.

Na manifestação enviada ao Supremo, a PGR argumenta que o acervo indiciário não confirmou a hipótese acusatória cogitada em relação a esses suspeitos "com o mesmo nível de horizontalidade e profundidade de prova dessa participação".

O ministro Fachin ressaltou que o arquivamento com fundamento na ausência de provas suficientes não impede novas investigações caso surjam novas evidências.

O ministro Fachin destacou que, exceto quando o pedido de arquivamento formulado pela PGR é feito com fundamento de atipicidade da conduta ou de extinção da punibilidade, o entendimento do STF é pacífico no sentido da obrigatoriedade do deferimento, independentemente de análise das razões invocadas.

"Trata-se de decorrência da atribuição constitucional ao órgão da titularidade exclusiva da opinio delicti a ser apresentada perante o Supremo Tribunal Federal", afirmou.

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Por sua vez, a colunista Bela Megale, no site do jornal O Globo, em 4 de março de 2021, informou: "A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin de rejeitar o pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) para arquivar uma denúncia contra Arthur Lira (PP-AL) deixou Augusto Aras de cabelo em pé. O procurador-geral da República promete lutar com "unhas e dentes" para colocar um ponto final na ação.

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Aras argumenta que, ao ignorar o pedido de arquivamento da PGR e levar a ação penal para ser julgada no plenário, Fachin assume o papel de acusação e deixa de ficar equidistante do caso, o que se espera de um juiz.

O PGR diz que a atitude traz "riscos de enfraquecer o Ministério Público", pois, dessa maneira, os promotores de justiça do país afora não terão mais o domínio da ação penal. Para ele, o feito de Fachin abre brecha para que juízes passem a atuar como titulares dos processos. Aras garantiu a interlocutores que "vai lutar" para que o MP não perca um dos mais importantes poderes que tem que é o de ser titular exclusivo da ação penal, o chamado "Domunus Litis".

A tudo isso, adite-se que o site da Carta Capital, em 17 de setembro de 2021, noticiou que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, cobrou uma manifestação da Procuradoria-Geral da República sobre um pedido feito pelo órgão para que a Corte rejeite uma denúncia oferecida.

Naquela reportagem, foi dito que "em seu despacho da última quinta-feira 16, Fachin mencionou o artigo 42 do Código de Processo Penal, que afirma que o "Ministério Público não poderá desistir da ação penal".

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"In casu, considerando o possível decurso in albis do prazo regimental, certifique-se e, em caso positivo, oficie-se imediatamente ao Exmo. Sr. Procurador-Geral da República", escreveu o ministro."

Esse é o fato.

II - PRINCÍPIOS DA INDISPONIBILIDADE E OBRIGATORIEDADE DO PARQUET. AS HIPÓTESES DE ARQUIVAMENTO

Ora, diverso da ação civil, na ação penal pública não cabe falar em desistência.

Pertencendo a ação penal ao Estado (salvo exceções), segue-se que aquele a quem se atribui o seu exercício, o Ministério Público, não pode dela dispor. Os órgãos do Ministério Público não agem senão em nome da sociedade que eles presentam. Eles têm o exercício, mas não a disposição da ação penal, esta não lhes pertence.

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Ensinou Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo Penal, primeiro volume, 1982, 6ª edição, pág. 284) que "e, por não lhes pertencer, não podem os órgãos do Ministério Público dela desistir, transigindo ou acordando, pouco importando seja ela incondicionada ou condicionada. Observo o artigo 42 do CPP:

Art. 42. O Ministério Público não poderá desistir da ação penal.

Como bem acentuou Guilherme de Souza Nucci (Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, pág. 168) consagra-se o princípio da indisponibilidade da ação penal corolário do princípio.

Esse dispositivo constante do artigo 42 do CPP é salutar e não supérfluo, porque torna nítido que o oferecimento da denúncia transfere, completamente, ao Poder Judiciário a decisão sobre a causa. Até que haja o início da ação penal poderá o promotor oferecer o arquivamento. Após, não, a teor do artigo 28 do CPP.

Oferecida a denúncia já não cabe mais a desistência.

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Consagra-se o princípio da indisponibilidade da ação penal.

Trata-se de um princípio informador da ação penal pública.

Na lição de Paulo Rangel (Direito processual penal, vigésima edição, p. 238):

A ação penal pública, uma vez proposta (obrigatoriedade) em face de todos os autores do fato ilícito (indivisibilidade), não permite ao Ministério Público desistir do processo que apura o caso penal, pois seu mister é perseguir em juízo aquilo que é devido à sociedade pelo infrator da norma, garantindo-lhe todos os direitos previsto na Constituição da República para, se for provada sua culpa, privar-lhe da sua liberdade; porém o direito de punir pertence ao Estado-juiz. Portanto, não pode dispor, o Ministério Público, daquilo que não lhe pertence.

Disse ainda Fernando Tourinho:

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"Costuma-se dizer, às vezes, que o Promotor "abandonou a acusação". Tal afirmativa, no sentido de que o Promotor desistiu da ação penal, sabe a disparate. Significa, como bem lembra Donnedieu de Vabres, que o órgão do Ministério Público se pronunciou favoravelmente ao imputado, o que é diferente".

Por outro lado, dispondo o Ministério Público dos elementos mínimos para a propositura da ação penal, deve promove-la (sem se inspirar em critérios políticos ou de utilidade social).

Seria possível, após o encerramento da instrução, uma proposta de absolvição por parte do Parquet ao juízo criminal. Mas isso se diferencia totalmente do caso em exame onde foi pedido o arquivamento após o oferecimento da denúncia formulada pelo órgão da acusação.

Assim caso o membro do Ministério Público esteja convencido, após a instrução probatória, da inocência do réu, deve manifestar-se, como guardião da sociedade e fiscal da justiça aplicação da lei, em sede de alegações finais, pela absolvição do imputado, o que não significa disponibilidade do processo.

Pois bem: nos autos daquele inquérito, assim pronunciou-se o ministro Fachin:

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"...acolho o pedido de arquivamento promovido pelo Ministério Público Federal em face Ciro Nogueira Lima Filho, Aguinaldo Velloso Borges Ribeiro e Eduardo Henrique da Fonte de Albuquerque Silva , com base no art. 3º, I, da Lei nº 8.038/1990 e art. 21, XV, e art. 231, § 4º do RISTF, e as ressalvas do art. 18 do Código de Processo Penal e do enunciado da Súmula 524/STF".

Trago à colação manifestação do ministro Fachin naquele procedimento, INQ 4631 / DF:

"A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal assevera que o pronunciamento de arquivamento, em regra, deve ser acolhido sem que se questione ou se entre no mérito da avaliação deduzida pelo titular da ação penal. Precedentes citados: INQ nº 510/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, unânime, DJ 19.4.1991; INQ nº 719/AC, Rel. Min. Sydney Sanches, Plenário, unânime, DJ 24.9.1993; INQ nº 851/SP, Rel. Min. Néri da Silveira, Plenário, unânime, DJ 6.6.1997; HC nº 75.907/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, maioria, DJ 9.4.1999; HC nº 80.560/GO, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, unânime, DJ 30.3.2001; INQ nº 1.538/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, unânime, DJ 14.9.2001; HC nº 80.263/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, unânime, DJ 27.6.2003; INQ nº 1.608/PA, Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário, unânime, DJ 6.8.2004; INQ nº 1.884/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário, maioria, DJ 27.8.2004; INQ (QO) nº 2.044/SC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, maioria, DJ 8.4.2005; e HC nº 83.343/SP, 1ª Turma, unânime, DJ 19.8.2005. Esses julgados ressalvam, contudo, duas hipóteses em que a determinação judicial do arquivamento possa gerar coisa julgada material, a saber: prescrição da pretensão punitiva e atipicidade da conduta. Constata-se, portanto, que apenas nas hipóteses de atipicidade da conduta e extinção da punibilidade poderá o Tribunal analisar o mérito das alegações trazidas pelo PGR."

.....

Na espécie, a titular da ação penal assevera que as evidências reunidas não lhe permitem esboçar quaisquer outras linhas investigativas viáveis, pois, segundo suas inferências, não teria sido aportado substrato justificador à continuidade dos atos de persecução criminal com relação aos sujeitos não denunciados.

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Como se depreende a Procuradoria-Geral da República não almeja seguir no caminho persecutório com relação aos investigados Ciro Nogueira Lima Filho, Aguinaldo Velloso Borges Ribeiro e Eduardo Henrique da Fonte de Albuquerque Silva. Portanto, acolho o pedido de arquivamento.

Disse ainda o ministro Fachin:

"Nada obstante o posicionamento sustentado pelo ora Requerente, não depreendo que a manifestação superveniente do Órgão Ministerial consentânea à tese defensiva e em sentido frontalmente contrário à inicial acusatória tenha a pretendida relevância a alterar a situação processual do caso em apreço, ou tampouco esteja a reclamar a atuação imediata e unipessoal por parte deste Relator, no sentido de subtrair do Plenário desta Suprema Corte o exame da denúncia ofertada. Na espécie, as pretensões e teses defensivas dos denunciados devem ser suscitadas a tempo e modo, nas respostas escritas à peça acusatória ora processada e ora reiteradas, após o que incumbirá o julgamento pelo Órgão Colegiado competente. 4. À luz do exposto: i) defiro o que postula a PGR e, com base no art. 3º, I, da Lei 8.038/1990 e art. 21, XV, e art. 231, § 4º do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, determino o arquivamento parcial do persecutório, com relação aos investigados Ciro Nogueira Lima Filho, Aguinaldo Velloso Borges Ribeiro e Eduardo Henrique da Fonte de Albuquerque Silva, nos termos das ressalvas do art. 18 do CPP e da Súmula 524/STF. Proceda-se, desde logo, às retificações na autuação correspondentes; ii) determino que conste no polo passivo da autuação os nomes já especificados na peça acusatória, vale dizer, Arthur César Pereira de Lira, Francisco Ranulfo Magalhães Rodrigues, Alberto Youssef, Leonardo Meirelles e Henry Hoyer de Carvalho, com a anotação dos instrumentos procuratórios e substabelecimentos vigentes juntados no curso da investigação, seja em âmbito policial, seja nesta Corte e;......"

Assim a ação penal deve prosseguir com relação a Arthur Lira e os demais réus.

Destaco, entretanto, que a matéria poderia ser resolvida pela Segunda Turma, preventa para tanto e não pelo Plenário.

No entanto, há decisão no sentido que abaixo apresento:

"No caso em questão, como ainda não havia sido iniciada a ação penal, já que ainda não recebida a denúncia pelo Juiz, nada impedia o órgão acusador de excluir da denúncia, depois de melhor exame, quem era objeto de suspeita inicial, não havendo, assim, que se falar em violação aos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade. Precedente da Suprema Corte. 5. Ordem denegada.". (HC 47.536/BA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 19/10/2006, DJ 20/11/2006, p. 345).

-"O órgão acusador pode excluir da denúncia, depois de melhor exame, quem era objeto de suspeita inicial; pode aditá-la para ampliar os limites da imputação e o rol de acusados, ocasião em que poderá ocorrer alteração da competência, sem que restem feridos os princípios da legalidade, obrigatoriedade, indisponibilidade (...)"(STF, HC 71899-0/RJ, Rel. Min. Maurício Corrêa - DJU 25.05.1995).

Ora, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento após a Constituição de 1988, pronunciou-se quanto ao tema em discussão, demonstrando que o julgador não está vinculado ao pedido do Parquet de absolvição. É o que se lê do que foi decidido no HC 69.957 - 0, Relator Ministro Néri da Silveira, publicado no Diário de Justiça de 25 de março de 1994.

Não se pode confundir a faculdade do Parquet de ter o juízo exclusivo de acusar diante das peças da investigação criminal, podendo ou não denunciar, com aquela cognição em que se dá a ele o papel de se requerer a absolvição. O Parquet não é o único juízo diante das provas apontadas no processo. Não se está afrontando nosso sistema acusatório, que não é puro. O que se está é salvaguardando o princípio da obrigatoriedade, se as provas conduzem à condenação. Respeita-se o princípio da verdade real.

Em síntese, pode o Parquet ao receber o procedimento investigatório: a) requerer novas diligências, denunciar ou pedir o arquivamento, se entende que não há subsídios para a acusação criminal. Ajuizada a ação penal não poderá desistir.

Dir-se-á que na medida em que o órgão da acusação desistindo da ação penal, afronta o artigo 42 do CPP, uma vez que a ação penal se esgotou na provocação da jurisdição. Agora, o que haverá é processo.

Em suma, o episódio narrado constitui uma triste capítulo na história do Parquet, após a redemocratização do país.

Não foi para isso que a Constituição de 1988 destacou para o Parquet um papel de relevância na defesa da ordem democrática.

Isso porque o Ministério Público não pode ficar a reboque de interesses políticos de ocasião.

Aguardemos, pois, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal na matéria.

*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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