Atualmente, os serviços de saneamento básico, como abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, são prestados de forma limitada e inadequada no Brasil, atingindo apenas aproximadamente metade da população. Baixos níveis de investimento são parte da razão pela qual o serviço não é amplamente oferecido. Em 2017, o investimento em saneamento básico foi semelhante ao montante investido em 2011 - US$ 2 bilhões -enquanto o custo para universalizar o acesso a todos os serviços de saneamento (água, esgoto, resíduos e drenagem) está estimado em US$ 94,3 bilhões, no período de 2014 a 2033, de acordo com o Plano Nacional de Saneamento Básico, exigindo, assim, um investimento médio anual de aproximadamente US$ 3,3 bilhões.
As tentativas de implementar mudanças no marco regulatório do setor foram discutidas por muitos anos, buscando uma verdadeira medida de modernização jurídica. Uma parte substancial da preocupação era sobre como tornar o setor mais atrativo para o investimento privado e reduzir a presença de empresas estatais.
Recentemente, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 4.162/2019, que foi amplamente comemorada. O Projeto de Lei foi aprovado pelo presidente Jair Bolsonaro, após apresentar 17 vetos ao texto, e sancionado como Lei nº 14.026/2020 ("Novo Marco Sanitário" ou "Lei do Saneamento"). A Lei de Saneamento alterou as regras de prestação de serviços do setor e terá impacto significativo na outorga de novas concessões e medidas de modernização regulatória, entre outros temas.
O fim do monopólio estatal
Uma grande mudança na Lei de Saneamento é a proibição de novos contratos de programa para prestação de serviços de abastecimento de água e esgoto. Os contratos de programa foram utilizados para permitir que as empresas estatais prestassem serviços em determinado município sem processo licitatório, impedindo a outorga da concessão a uma empresa privada, uma vez que os contratos de programa só poderiam ser celebrados com empresas estatais. Essa disposição legal foi um gargalo. Como resultado, hoje apenas cerca de 8% dos serviços de saneamento são prestados por empresas privadas no Brasil.
A proibição de novos contratos de programa torna a concorrência a regra principal. As empresas estatais podem participar dos procedimentos licitatórios em conjunto com empresas privadas em condições iguais para prestar serviços de abastecimento de água e esgoto. A atualização também significa que os serviços serão necessariamente prestados por meio de contrato de concessão após um processo de licitação pública.
Como regra de transição, o Marco do Saneamento Básico permite que os contratos de programa em andamento permaneçam em vigor até o seu vencimento se as empresas estatais forem capazes de provar sua capacidade econômica e financeira de prestarem os serviços por meio de recursos próprios ou financiamento de terceiros. O principal critério é a capacidade de oferecer acesso universal de serviços de água e esgoto nas áreas relevantes sob o contrato até 31 de dezembro de 2033. Se a estatal não puder comprovar sua capacidade para atingir esse objetivo, o contrato de programa em andamento será rescindido, e a outorga da concessão estará sujeita a um procedimento licitatório.
Um regulador nacional
Anteriormente, o setor de serviços de saneamento era regulado apenas no nível municipal. A falta de padronização e regras básicas, incluindo critérios de revisão tarifária, indenização, fiscalização, metas e obrigações contratuais, oneraram custos de transação e desestimularam a entrada de novos atores privados no setor, dado o maior grau de insegurança e incerteza jurídica.
Uma das premissas do novo Marco Legal do Saneamento Básico, como indicado acima, é a necessidade de ampliar as parcerias com o setor privado para alcançar a ambiciosa meta de acesso universal ao serviço. A necessidade de adoção de medidas para melhorar e estabelecer uma regulação padronizada eram uma das principais preocupações do mercado. Como resultado, o Marco Legal do Saneamento, estabelece que a Agência Nacional de Águas ("ANA") estabelecerá diretrizes regulatórias a serem seguidas pelas agências reguladoras estaduais e municipais. A alocação de recursos federais será condicionada ao cumprimento das diretrizes estabelecidas pela ANA.
O conteúdo mínimo dos contratos
Outra mudança significativa trazida pelo novo Marco Legal são certas disposições contratuais essenciais obrigatórias. Além dos previstos no art. 23 da Lei nº 8.987/1995, que introduziu o regime de concessão no sistema jurídico brasileiro, os contratos de prestação de serviços de saneamento básico devem conter: metas: expansão do serviço, qualidade da prestação de serviços, eficiência e uso racional de água, eletricidade e outros recursos naturais, entre outros; receitas extraordinárias: potenciais fontes de receitas alternativas, complementares ou acessórias, bem como aquelas decorrentes de projetos associados, incluindo, entre outros, venda e utilização de efluentes sanitários para reuso de água; indenização: para investimentos não amortizados em ativos reversíveis: metodologia para cálculo do valor indenizado; e alocação clara de riscos: compartilhamento de riscos entre as partes, incluindo força maior, caso fortuito e eventos extraordinários com consequências econômicas.
Esse conteúdo proporciona outro nível de certeza e expectativa sobre o contrato de concessão, trazendo maior segurança ao investidor privado.
A prestação regionalizada
O Marco Legal do Saneamento estabelece uma definição jurídica mais ampla quanto à prestação de serviços regionalizados como prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços de saneamento básico em uma região cujo território abrange mais de uma cidade. O objetivo da medida é garantir a prestação de serviços de saneamento em cidades menores, compensando custos, unindo outros municípios para uma estratégia de economia de escala.
A provisão regionalizada pode ser estruturada através de três composições principais: região metropolitana: aglomerado urbano ou microrregião: unidade criada por cada estado sob lei, agrupando municípios adjacentes; unidade regional de saneamento básico: unidade criada por cada estado sob lei, pelo agrupamento de municípios que não precisam ser contíguos, para atender adequadamente aos requisitos de higiene e saúde pública ou para garantir viabilidade econômica e técnica a municípios menos favorecidos; e bloco de referência: agrupamento de municípios que não precisam ser contíguos, estabelecidos pelo Governo Federal caso o Estado se opere omissivo, formalmente criado por meio de gestão associada de titulares de serviços (por exemplo, acordos de cooperação e consórcio público). Outra medida adotada pelo Marco Legal é a concessão de prioridade de financiamento federal aos blocos regionais, quando a sustentabilidade econômica e financeira do serviço não pode ser garantida apenas por meio da cobrança de tarifas ou impostos, mesmo após o agrupamento com outros municípios do estado.
Conclusão
Espera-se que o novo Marco Legal do Saneamento Básico aumente o investimento privado no Brasil devido às mudanças implementadas, como a definição de igualdade de concorrência entre empresas estatais e privadas, e sinalização do interesse do governo em melhorar as condições legais para contratos focados na infraestrutura. Por fim, o Marco Legal reconhece como as parcerias com o setor privado aumentam as chances de alcançar metas de interesse público.
*Bruno Werneck, Gustavo Vieira, Laís Youssef são, respectivamente, sócio, associado e law clerk da prática de Direito Público do Tauil & Chequer Advogados