Um dos contos narra a luta travada entre guerreiros imbatíveis e cavaleiros imortais. 7 guerreiros comemoravam a invencibilidade nas várias batalhas disputadas, quando, no horizonte, surgiu um cavaleiro, armado de espada e escudo, e seguiu em disparada contra o grupo. Ao se aproximar, foi recebido por um dos cavalheiros que, a um só golpe de espada, o rachou ao meio. A coisa não acabou por aí, já que cada uma das metades se tornou novo cavaleiro, que, não demorou muito, foram golpeados por outros guerreiros. E a coisa só piorava, porque de cada um dos golpeados surgiam outros dois valentes cavalheiros. Multiplicavam a cada golpe de espada. Em poucos dias, os guerreiros, até então invencíveis, foram derrotados pelo exército de cavalheiros.
O PL 8045/2010, em trâmite no Congresso Nacional, que contempla o Novo Código de Processo Penal, diferentemente do que muitos alardeiam por aí, não tem por objetivo aplacar os selváticos índices de criminalidade e de violência vigentes no país. Mas, ao contrário, se aprovado como está, funcionará como espécie de espada multiplicadora de criminosos sanguinários por ausência de punição.
Segundo o Atlas de Violência de 2018, apresentado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 62.517 pessoas foram assassinadas no Brasil no ano de 2016. É uma verdadeira carnificina! Mais de 7 pessoas são assassinadas a cada hora. São mais de 150 assassinatos por dia.
O Brasil é o país com maior número absoluto de homicídios do mundo.
Não bastasse isso, por aqui, o índice de elucidação dos crimes de assassinatos é baixíssimo. Estima-se que é inferior a 8%. Para se ter uma ideia da ineficiência das agências locais de investigação e de punição, este percentual é de 65% nos Estados Unidos, na Inglaterra é de 90% e na França é de 80%.
Em meio a essa contagem voraz de cadáveres e esse índice obsceno de impunidade, o parlamento agracia os assassinos com a chave d'ouro da impunidade, qual seja, a sociedade, representada pelos jurados - juízes de fato e do fato nos crimes dolosos contra a vida -, não poderá ter acesso ao conteúdo dos depoimentos das pessoas ouvidas na fase de investigação criminal sobre o crime que julgarão no Tribunal do Júri.
O Novo Código de Processo Penal proíbe que o Ministério Público informe aos jurados o que as testemunhas declararam na fase de investigação criminal. O novo dispositivo, se aprovado, será mais uma porta larga da impunidade. Isto é, diante de um testemunho esclarecedor prestado na fase de investigação, basta que a testemunha, por uma série de razões, se retrate em juízo, mude de endereço para local incerto ou - numa visão pessimista, mas possível, sobretudo no que diz respeito às organizações e facções criminosas - seja executada antes de depor em juízo para que o acusado alcance a impunidade.
Além disso, entre outros absurdos que ferem de morte a liberdade de expressão e a verdade fática, o novo diploma mantém vigente dispositivo do atual código que proíbe o Ministério Público de informar aos jurados, sob seu ponto de vista, as razões da ausência, do silêncio do acusado ou do uso de algemas.
Ora, os atos e comportamentos assumidos pelo acusado durante a persecução penal do Estado, a exemplo do silêncio, são de suma importância no contexto da apuração e julgamento da causa. O porquê de o acusado estar preso e algemado da mesma forma. A exploração de todos elementos probatórios colhidos tanto na fase de investigação como na fase judicial também é de extrema valia para subsidiar o julgamento dos jurados.
A restrição do que pode e não pode ser dito no Tribunal do Júri impõe um notável e infeliz jogo de amarelinha linguístico, apenas compatível com regime ditatorial, totalmente antidemocrático. Não há justificativa razoável e plausível que autoriza a anulação do direito à liberdade de expressão justamente em um julgamento popular.
Para que o jurado possa formar sua opinião e decidir segundo sua consciência, é importante que lhe seja garantido o acesso às mais variadas informações e argumentos das partes. Não há espaço para meia-verdade no Júri. O Legislativo não pode proibir a utilização de argumentos pelas partes em plenário do Júri por entender inadequado aos interesses de quem quer que seja. Não é legítimo que o Legislativo regule o que os jurados podem e o que não podem ouvir. Há claro atentado contra autonomia tanto da parte que tem a ideia e não pode expressá-la como dos jurados que ficam privados do acesso a ela.
Em outras palavras, em um ambiente democrático como é o Tribunal do Júri, o exercício de debate livre e aberto aos argumentos das partes é a mais pura representação da liberdade de expressão em uma sociedade plural. O melhor recurso para combater um mau argumento é o debate com a parte adversa, a qual incumbe revelar seu desacerto, e jamais a censura legislativa.
Nunca é demais lembrar que o debate no Júri é firmado entre profissionais maiores, capazes e com formação jurídica, que atuam em pé de igualdade. Se de um lado há o promotor de Justiça, do outro há um defensor privado ou público. Além disso, os destinatários dos debates são os jurados, pessoas maiores, capazes e idôneas. Nada justifica o controle prévio do que pode ou não ser dito, já que todo pensamento externado por uma parte pode ser combatido e infirmado pela outra.
Logo se vê então que esse tipo de patrulhamento legislativo no Tribunal do Júri, além de antidemocrático e violador da liberdade de expressão, figura como mais um facilitador da impunidade e da injustiça já que solapa do Ministério Público o direito de informar aos jurados todos os fatos inerentes ao caso em julgamento para que possam julgar a causa com ciência e consciência. A vedação imposta implica clara violação à liberdade de argumentação do promotor de Justiça e ao direito de informação dos jurados. É uma espada potente, que multiplicará a impunidade de assassinos.
Por isso, deve ser embainhada e lançada bem longe do texto legislativo, se de fato tiver a mínima pretensão de combater os crimes de sangue e de reduzir a impunidade.
*César Danilo Ribeiro de Novais, promotor do Tribunal do Júri em Mato Grosso, membro do GAECO - Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, coordenador do Núcleo do Tribunal do Júri do Ministério Público do Estado de Mato Grosso e autor do livro A Defesa da Vida no Tribunal do Júri