A segunda parte do projeto de Reforma Tributária, entregue nas últimas semanas, tem como um de seus pilares a redução dos incentivos à "pejotização". De acordo com o Governo Federal, a tributação dos dividendos seria uma das respostas encontradas para desestimular a contratação de pessoas jurídicas constituídas com o intuito de reduzir a carga tributária e previdenciária, bem como neutralizar os encargos trabalhistas.
Muito embora, na prática, a medida sugerida pelo Governo Federal possa surtir efeito contrário - na medida em que incentiva a adoção de um CNPJ para dividendos de até R$ 20.000,00 -, o fato é que, nas últimas semanas, reacendeu-se o debate em torno da legalidade da constituição de pessoa jurídica, por meio de vias legítimas e idôneas, com o objetivo exclusivo de minimizar a carga tributária.
A literalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005 não deixa dúvidas quanto à legitimidade da adoção de regime fiscal e previdenciário mais favorável à constituição de um CNPJ, conforme inclusive recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, na prática, os Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (RFB) e os membros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) têm declarado a existência de vínculo empregatício a priori e sem qualquer manifestação prévia da Justiça do Trabalho.
Muitas vezes, os argumentos comumente utilizados para a caracterização unilateral do vínculo empregatício perpassam a essência da atividade fiscalizatória e a ausência de violação à competência da Justiça do Trabalho. No mérito, de maneira geral, tanto os Auditores Fiscais da RFB quanto os Conselheiros do CARF recorrem à interpretação de que a utilização de um CNPJ caracterizaria, de antemão, o intuito de burlar a fiscalização.
Essa discussão foi recentemente levada ao STF por meio da ADPF nº 647. A ação foi ajuizada pela Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios com o objetivo de questionar a possibilidade de auditor fiscal da Receita Federal apontar a existência de vínculo empregatício, sem qualquer intervenção ou pronunciamento da Justiça do Trabalho.
Para a associação, a prática recorrente adotada pela RFB e pelo CARF violaria a separação de poderes, a reserva jurisdicional da Justiça do Trabalho, o direito de defesa e demais garantias processuais, o princípio da livre iniciativa e da liberdade de empreender e a segurança jurídica.
O fenômeno da pejotização, no entanto, não é inédito no âmbito do STF. No julgamento da ADPF nº 324, o Plenário declarou a constitucionalidade da terceirização de qualquer atividade, meio ou fim. Além disso, mais recentemente, no julgamento da ADC nº 66, o STF declarou a constitucionalidade do artigo 129 da Lei nº 11.196/2005, que determina que pessoas jurídicas prestadoras de serviços intelectuais, incluídos aqueles de natureza científica, artística ou cultural, sujeitam-se apenas ao regime fiscal e previdenciário próprio das pessoas jurídicas.
À luz desses precedentes, a ministra Cármen Lúcia apresentou voto, no julgamento da ADPF nº 647, julgando improcedente a ação, no mérito. Embora tenha apontado vícios formais que dificultam o processamento da ação, no entender da relatora, os precedentes mencionados acima seriam suficientes para conferir segurança jurídica ao contribuinte que escolha constituir uma pessoa jurídica com o objetivo de minimizar sua carga tributária. O ministro Marco Aurélio acompanhou esse entendimento e, na sequência, o ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos, suspendendo o julgamento.
Acaso o raciocínio manifestado pela ministra Cármen Lúcia logre-se vencedor, eventuais vícios perpetrados pela administração pública, referentes à caracterização dos vínculos empregatícios, deverão ser suprimidos por meio de controle judicial, resguardando-se as especificidades de cada caso.
*Cristiane I. Matsumoto, sócia de Pinheiro Neto Advogados
*Lucas Oliveira Barbosa, associado de Pinheiro Neto Advogados
*Nayanni Enelly Vieira Jorge, associada de Pinheiro Neto Advogados