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Nova disciplina dada ao estelionato e a necessidade de manifestação de vontade da vítima: aplicabilidade aos casos em andamento?

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Por Leonardo Massud e Caio Henrique Godoy da Costa
Atualização:
Leonardo Massud e Caio Henrique Godoy da Costa. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A Lei n.º 13.964/19, o chamado "Pacote anticrime", trouxe inúmeras mudanças. Dentre elas, introduziu o § 5º do artigo 171 do Código Penal, que agora exige a representação da vítima (manifestação de vontade) para que o crime de estelionato seja apurado, o que antes ocorria independentemente do seu desejo. Tal mudança representa mais um passo importante na busca de limitar o processo penal e todas as suas consequências a casos de natureza mais grave. Além de contribuir para desafogar a assoberbada Justiça criminal, soluções alternativas como essa se mostram, na maior parte das vezes, muito mais interessantes e benéficas à vítima, constituindo-se também numa resposta mais adequada do Estado à sociedade para delitos cometidos sem violência ou grave ameaça, na medida em que promove todo um esforço à restauração do status quo ante.

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Aliás, nesse sentido, a reforma foi até tímida e trouxe uma discriminação inexplicável em relação a outros crimes patrimoniais cometidos sem violência ou grave ameaça. Qual seria a razão, por exemplo, para permitir uma solução conciliatória para o estelionato e excluir para a apropriação indébita ou para o furto? Excetuando-se diferenças quanto ao modo de execução, tais delitos em muito se assemelham quanto ao grau de reprovabilidade abstrata das condutas que descrevem (individualização na fase legislativa). Não por outra razão, possuem as mesmas penas mínimas (no caso do furto simples, apropriação indébita simples e estelionato), sendo até um ponto de destaque, à indevida discriminação legislativa, o fato de que o estelionato tem sua pena máxima em patamar mais alto do que a dos outros crimes patrimoniais aqui mencionados.

Seja como for, o objetivo do presente escrito é analisar a decisão tomada, no último dia 24 de março, pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, julgando o Habeas Corpus nº 610201/SP, colocou termo à divergência existente entre a Quinta e a Sexta Turmas da Corte quanto à retroatividade da exigência de representação da vítima em casos de estelionato.

Pela referida decisão, prevaleceu o entendimento de que o § 5º do artigo 171 do Código Penal não poderia retroagir para casos em que já recebida a denúncia, preservando-se, no raciocínio dos Ministros que assim votaram, "os atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada", em homenagem à "segurança jurídica".

O posicionamento acima mencionado alinha-se ao já adotado, por unanimidade, pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) no Habeas Corpus nº 187341/SP, embora neste o marco temporal estabelecido para a retroatividade tenha sido o oferecimento da denúncia e não o seu recebimento.

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De qualquer modo, em ambos os casos, as Cortes Superiores limitaram indevidamente a incidência de uma norma muito bem-vinda que, na contramão do punitivismo, aumentou os espaços de consenso no direito penal, permitindo que as partes (vítima e ofensor) cheguem a uma solução mais benéfica do que um eventual processo penal poderia garantir.

Diz-se indevidamente pois a exigência de representação para o oferecimento de denúncia é uma norma inequivocamente de caráter penal, na medida em que a falta da representação tem por consequência a extinção da punibilidade do acusado, ou seja, afeta diretamente o direito de punir do Estado.

Diferente das normas processuais penais, que não atingem a validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior, as normas penais mais benéficas ao acusado, como é o caso do § 5º do artigo 171 do Código Penal, devem necessariamente retroagir em seu benefício, pois assim determina a Constituição Federal e o Código Penal, sendo vedado ao Poder Judiciário estabelecer marcos temporais não previstos pelo legislador para limitar a retroatividade da norma.

Ademais, a restrição estabelecida pelas Cortes Superiores à retroatividade da Lei nº 13.964/19 ofende o princípio constitucional da isonomia ao permitir, por exemplo, que duas pessoas que cometeram delitos de estelionato no mesmo dia recebam, injustificadamente, tratamentos diferenciados da Justiça, a depender tão somente da data em que recebida a denúncia. Neste exemplo, para o acusado cuja denúncia foi recebida após a entrada em vigor do pacote anticrime a lei retroagirá e ele terá o direito de celebrar eventual acordo com a vítima para evitar a representação e, consequentemente, a continuidade do processo penal. Por outro lado, o acusado cuja denúncia foi recebida um dia antes da vigência do pacote anticrime não terá esse direito, ainda que o crime tenha ocorrido exatamente na mesma data.

O propósito da possibilidade de retroatividade da lei mais benéfica não é outro senão impedir que pessoas em situações fundamentalmente idênticas sofram consequências distintas ou não possam ter equiparados benefícios estabelecidos pelo legislador. A regra vale não apenas para a pena e prazos prescricionais, mas para quaisquer condições estabelecidas para a ocorrência do crime ou mesmo para a sua punibilidade.

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Malgrado corrigidas após algum tempo, tais recalcitrâncias da jurisprudência já apareceram em outras ocasiões, tal como quando se estabeleceu, para os crimes de sonegação fiscal, a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo a qualquer tempo, mesmo após o recebimento da denúncia (o que não ocorria antes da Lei nº 10.684/03).

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De qualquer forma, parece-nos grave que, uma vez mais, venha o Poder Judiciário impor limitações à fruição de direitos que não foram estabelecidas pelo Legislativo.

É provável, no entanto, que, em breve, no caso analisado, o tema seja levado novamente ao STF pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que poderá recorrer da decisão do STJ, garantindo à Suprema Corte nova oportunidade de discutir o tema e fazer valer o texto do artigo 5º, XL, da Constituição Federal e do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal. Aguardemos!

*Leonardo Massud, professor de Direito Penal da PUC/SP e advogado criminal

*Caio Henrique Godoy da Costa, pós-graduado em Direito Penal Internacional e Direito Humanos pelo Instituto Internacional de Siracusa (Itália) e advogado criminal

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