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Nossa Constituição retalhada

Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

É conhecida e velha a piada - aliás, muito sem graça - que narra o episódio de alguém que quer comprar um exemplar da Constituição Brasileira numa livraria jurídica e o vendedor responde: - "Nós não trabalhamos com periódicos!".

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Isso porque a nossa lei fundamental vai sendo mutilada, alterada, modificada ao sabor dos interesses eleiçoeiros. Nem adianta explicar a diferença entre Brasil e Estados Unidos. Ambos começaram juntos. A piada mais apropriada seria aquela do Criador a explicar: "Você vai ver o povinho que eu colocarei lá...".

A Constituição norte-americana é uma lei sem o sofisticado status da nossa. Tanto que ela pode ser alterada pelo processo legislativo comum, aplicável à lei ordinária. É uma Constituição do tipo flexível, portanto. A nossa, é do tipo rígido. Ou seja: a alteração depende de um quórum especialíssimo: aprovação por três quintos dos integrantes de cada Casa do Congresso, em duas votações consecutivas.

Por ser flexível, a Constituição ianque atravessa incólume os séculos, pois sua atualização é feita pela Suprema Corte. É uma Corte Constitucional, não um Tribunal multiportas como o STF brasileiro. Acumula competências e não abre mão delas. Seu tempo é absorvido nas funções anômalas, negligenciando a função precípua: sinalizar ao Brasil o que é compatível com o pacto federativo ou o que não merece o rótulo de lei.

Por ser uma Carta analítica e muito extensa, a Constituição do Brasil não merece o apreço que o americano devota à sua. Cada lar americano tem, sobre a lareira, uma bandeira e um exemplar da Constituição. Aqui, nem a comunidade jurídica pode se arvorar em conhecer o texto fundante. Ele é oscilante, movediço, suscetível de constante modificação.

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É surreal o número de 1344 propostas de emendas à Constituição em curso pela Câmara e Senado. É um atestado evidente de que os parlamentares não sabem o que é uma Constituição. Isso também explica o desapreço e o desrespeito que ela merece. É descumprida, escarnecida, ignorada pelo governo e por indivíduos. Nada acontece. Não é para valer!

Nem é suficiente afirmar que a Constituição de 5.10.1988 é analítica e muito extensa porque produzida após período de autoritarismo sufocante e virou Constituição Panaceia: cuida de tudo. Tornou formalmente constitucional matéria que não deveria estar nela.

É algo cultural. Um pacto destinado a organizar o Estado e a declarar direitos fundamentais não é algo transitório. O que justifica essa volúpia modificativa? Um texto sintético poderia ser facilmente memorizado e o respeito à ordem constitucional seria outro.

Mas a história do constitucionalismo brasileiro é uma crônica praticamente surreal: Constituição Imperial de 1824, Constituição Republicana de 1891, reforma constitucional que implicou em nova Constituição em 1926, Constituição Democrática de 1934, Constituição polaca de 1937, Constituição Democrática de 1946, Constituição outorgada em 1967, quase outra com a Emenda Constitucional número 1, de 1969 e Constituição Cidadã ou Ecológica de 1988.

Além da revisão, a "Cidadã" já sofreu cento e treze emendas. As PECs - Propostas de Emenda à Constituição trivializaram o texto fundamental. Uma Comissão de Constituição e Justiça existe exatamente para obstar modificações desnecessárias. Mas um Parlamento que aprova gasto de quase seis bilhões para campanha eleitoral não tem noção do que signifique estabilidade constitucional.

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O Supremo Tribunal Federal tem como função precípua a guarda da Constituição. Mas são tantas as suas atribuições. Afinal, tem de julgar Habeas Corpus, tem de ser a Segunda Instância dos Juizados Especiais, seus Ministros precisam fazer conferências - dentro e fora do Brasil - promover cursos e eventos. Não é possível decidir o que vale ou não vale. Até porque, essas frequentes modificações acarretam uma espécie de desvario constitucional. Como era mesmo que o texto original tratava do assunto?

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Em países sérios, a Constituição é algo praticamente intocável. O que justifica sua modificação? Pretende-se adotar a monarquia? Ou o Parlamentarismo?

Esse festival de PECs é manifesta demonstração da imaturidade do Parlamento e da insuficiência do STF como o responsável pelo que é constitucional ou írrito à Constituição. Não vale argumentar com aquela surrada pregação de que o Brasil é um país jovem, só tem meio milênio. É a mesma idade dos Estados Unidos que, se não podem servir de exemplo em tudo, ao menos em relação à sua Constituição conduzem-se como os povos civilizados devem se comportar.

Não enxergo sequer lamparina a bruxulear no fim do túnel. Apenas retrocesso acelerado, numa disparada rumo ao caos.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022

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