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No lodo, as flores luminosas da cultura

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Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. FOTO: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Foto: Estadão

Em tempos sombrios, de negação da ciência, desprezo à cultura, incentivo à destruição da natureza e cultivo do ódio e da intolerância, chega-se a pensar em definitiva queda civilizatória. É preciso encontrar algum sinal denotador de que nem tudo está perdido e de que há esperança para o gênero humano.

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Uma instigante ideia localiza-se em Nietzsche. Ele busca na Antiguidade a certeza de que o mal pode servir a uma cultura. No ensaio "O Estado Grego", ele parte da concepção de Hobbes da guerra de todos contra todos. O estado natural da convivência humana é a ocorrência de terríveis tempestades de guerra entre os povos. Todavia, "nos intervalos, a sociedade terá tempo e oportunidade de produzir sob o efeito concentrado para dentro daquela guerra as flores luminosas do gênio da cultura".

Em síntese, na visão de Nietzsche, a guerra periódica como uma emergência, "como um novo submergir no elemento heraclítico-dionisíaco, é indispensável para que floresça a cultura. A cultura precisa do subterrâneo cruel, ela é o belo fim do terrível. A relação necessária entre campo de batalha e obra de arte revela a verdade sobre a cultura".

Se isso tem algo de verdade, então é promissora a perspectiva para o Brasil. Elementos de verdadeira guerra estão no ar. Guerra contra a natureza, com o desmatamento estimulado, desmanche das estruturas de fiscalização, derrubada dos esquemas protetivos da biodiversidade, entrega de terras públicas para a grilagem e para a exploração mineral em áreas demarcadas para os indígenas.

Estes são eliminados por criminosos, sem que haja a punição dos culpados. Projetos de lei querem anistiar os invasores de áreas protegidas e de conservação.

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Guerra declarada contra a ciência, contra os cientistas, contra as organizações que foram preordenadas a coordenar ações de prevenção contra pestes, pragas e epidemias. Guerra a quem se propõe criticar o Brasil por sua guerra de narrativas, nas teorias conspiratórias, na ridicularização de quem se atreva a dizer que o Estado é um pária em diversos setores.

Guerra de narrativas, com a polarização de fanatismos e a disseminação de ofensas, difamações, injúrias e outros atentados contra a honra de autoridades ou de pretensos inimigos.

Guerra aberta contra a vacinação, considerada essencial para a retomada da economia, contra o distanciamento social, contra as medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde como as únicas possibilidades de enfrentamento da Covid19.

Guerra contra o controle de gastos, contra o orçamento racional, pois dividido e partilhado por aves de rapina, insensíveis para as reais necessidades de uma economia em frangalhos. Em lugar das reformas política, administrativa, tributária, a preocupação com eleição e com a grande praga da reeleição.

Guerra contra os jovens que são assassinados e passam para as estatísticas sem que haja comoção nacional, assim como a perseguição aos indígenas - que eram os verdadeiros donos do território e foram rechaçados de seu milenar habitat - contra as crianças, contra os idosos, contra as minorias. Guerra de versões sobre os confrontos entre infratores e policiais, guerra aberta contra o desarmamento, para fomentar as pequenas guerras íntimas que sempre acabam com homicídios ou feminicídios. Ou, infelizmente, com infanticídios, cada vez mais frequentes.

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Pode ser um exagero detectar em todos os problemas brasileiros essa visão de guerra. Mas não é muito diferente a situação em que o Brasil das múltiplas crises mergulhou. Começou com crise ética, a desaguar em crise moral, depois crise econômica e, finalmente, a crise sanitária.

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Não falta lodo, portanto, tristeza diante do meio milhão de mortos pela peste, número que se alcançará em breve, pelo índice dos óbitos e das contaminações diariamente noticiadas. Nem falta sofrimento ao se pensar que o "celeiro do mundo", com a mais possante agroindústria do planeta, permita que milhões passem fome.

Se essa é a condição nitzscheana para a produção de cultura e arte, então assistiremos a um estrondoso boom de belas obras em todos os setores. Pois não falta criatividade a este povo tão exposto às intempéries políticas, mas que resiste, tal e qual já se definiu o sertanejo: antes de tudo um forte.

Que venham músicas, pinturas, esculturas, fotografias, filmes, peças teatrais, poesias, contos, romances, ensaios, teses e dissertações, livros a mancheia, performances, instalações, happenings, memes, tik-toks, lives e tudo o mais que puder exprimir a beleza que vai dentro d'alma de um brasileiro que não desiste.

Que teima em sonhar, em esperar por dias melhores, com o sonho de ainda morar naquela terra que um dia foi verde, onde há palmeiras, em cujo topo canta o sabiá.

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Não seja por falta de crueldade que não se produza o belo e se faça florescer a cultura nesta inspiradora Pátria.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022

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