PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

'No Brasil não há democracia por causa da desigualdade', diz historiador americano

Em entrevista ao Estadão, James Green, 71, afirma que 'não existe uma democracia verdadeira em nenhum país do mundo', critica o sistema eleitoral dos EUA e avalia que o Supremo Tribunal Federal brasileiro 'demorou para ser democrático'

Por Isabella Alonso Panho
Atualização:

O historiador e professor James Green, 71, é doutor em história latino-americana pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (Divulgação: Grupo de pesquisa 'História, sociedade e religião')  

James Green, 71, é professor e historiador, doutor em história latino-americana pela UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), com pesquisas em temas relacionados à democracia brasileira, regimes autoritários e movimento LGBT+. Na sexta-feira passada (26), o pesquisador participou de uma conferência sobre democracia na Universidade Estadual de Londrina, concomitante a uma exposição de documentos que mostram a atuação de serviços de inteligência brasileira durante a ditadura militar. Ele esteve na Universidade a convite do grupo de pesquisa "História, Sociedade e Religião", financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e pela Fundação Araucária. 

Em entrevista concedida ao Estadão, Green falou a respeito de temas como a existência de uma real democracia no Brasil, o apreço de muitas pessoas pela ditadura e as lutas de minorias políticas. Confira a entrevista:

PUBLICIDADE

 

ESTADÃO: Existe democracia no Brasil?

JAMES GREEN: Não existe uma democracia verdadeira em nenhum país do mundo. Ela é um processo em expansão, de conquista de direitos democráticos e participação na sociedade, nas suas articulações políticas. O Brasil estava avançando muito, mas houve um retrocesso nos últimos três, quase quase quatro anos. Por exemplo, os Estados Unidos, em certos sentidos, são bastante democráticos na sua prática cotidiana, mas também são altamente antidemocráticos. O sistema eleitoral americano é do século 18. Foi construído para não deixar a vontade popular vencer. Biden ganhou 7 milhões de votos a mais que Trump. Mas, nas eleições por esse sistema eleitoral - colégio eleitoral -, o resultado depende da maioria de cada estado, que leva seus delegados para uma votação. É um sistema profundamente antidemocrático. Nesse sentido, os Estados Unidos têm muito a fazer para melhorar a sua democracia. É um exemplo.

ESTADÃO: E o Brasil?

JG: No caso do Brasil, não há democracia porque há uma desigualdade social e econômica tão profunda que grandes setores da sociedade não têm acesso a uma participação além da obrigação de votar. Não há condições físicas, econômicas e sociais para ter tempo de participar da política. Quem está ganhando um salário mínimo está ralando, trabalhando muito, para pagar as contas e dar comida para as crianças. Na medida em que houver uma resolução um pouco melhor da desigualdade social, haverá espaço para pessoas menos privilegiadas participarem ativamente do processo político.

ESTADÃO: O senhor acredita que nossa sociedade ainda se ancora em elementos antidemocráticos e ditatoriais?

JG: E coloniais também. Por exemplo, a desigualdade racial nesse país é um legado de 350 anos de escravidão. A marginalização dos povos originários ou indígenas é uma expressão do processo da colonização portuguesa aqui, assim como houve marginalização dos povos originários norte-americanos nos Estados Unidos. É por meio desses legados estruturais que os setores sociais economicamente poderosos dominam grandes setores da sociedade e outros milhões e milhões de pessoas marginalizadas. E quanto aos legados da ditadura, o saudosismo que Bolsonaro tem é assustador. Quando o presidente de um país está defendendo uma ruptura com a democracia é muito preocupante. 

ESTADÃO: E por que as pessoas têm esse saudosismo em relação à ditadura? 

JG: São várias razões. Primeiro, não há uma discussão suficientemente ampla sobre essa realidade nas escolas. As pessoas têm muito pouca informação sobre esse período. Acham que era um momento dourado, em que não havia tráfico de drogas, violência, problemas sociais. Segundo, o Brasil tem uma porcentagem da população que é conservadora, que foi conservadora antes do golpe de 64, durante o processo de ditadura e continua sendo depois. A terceira questão é que, como os problemas socioeconômicos não foram resolvidos - como questões de criminalidade, de violência, de desemprego e de inflação - muitas pessoas procuram uma solução fácil, imaginam possibilidades fantasiosas, de um passado que foi melhor do que o presente, que, para elas, está um pesadelo. É uma uma pobreza de conhecimento da própria realidade do país. 

Publicidade

ESTADÃO: O senhor tem acompanhado as notícias sobre o STF. Tem ocorrido um movimento de judicializar e criminalizar ações antidemocráticas. Esse é um caminho adequado? 

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

JG: O STF demorou para ser democrático. Em vários sentidos. O fato de eles descobrirem anos depois que Lula não deveria ser processado no Paraná é uma uma questão que eu não consigo entender. É um exemplo de que o STF foi politizado. Mas penso que ele está percebendo cada vez mais - especialmente com Bolsonaro atacando ao judiciário e ao STF tão violentamente - que há uma ameaça séria e que o tribunal possui um papel importante nesse sentido. Ele ainda não controlou as medidas que violam a lei eleitoral, de divulgação de informações falsas, de utilização das mídias sociais antes de começar a campanha. Descobriu agora empresários que estariam realmente pensando em golpe - e que não seriam um clube de esquina, que conversava sobre suas fantasias. Eram pessoas poderosas, com recursos. Alguns deles bancaram a campanha eleitoral de Bolsonaro em 2018. São ameaças sérias, que têm que ser protestadas. 

ESTADÃO: Insistindo na pergunta da judicialização e da criminalização, esse é um caminho adequado?

JG: O ideal seria outro caminho, mas a questão é: como deixar claro que não aceitamos golpe de estado no Brasil? Há uma negação muito forte da história brasileira sobre a ditadura, há uma negação da tortura. Teve gente do estado, da política oficial, torturando cidadãos e ninguém foi processado. 

ESTADÃO: O senhor tem várias pesquisas sobre o homossexualidade masculina. Nesse ponto, falando sobre democracia, o senhor acredita que regimes autoritários se utilizam do fortalecimento de opressões para se sustentar? 

Publicidade

JG: Totalmente. Essa foi a situação durante a ditadura. Após o AI-5, quando internacionalmente surgiu o movimento LGBTQIA+, no Brasil ele não podia existir, justamente porque não havia espaço democrático de organização. As pessoas tinham medo de ter reuniões, de falar sobre as indicações políticas. Foi só durante o processo da redemocratização que o movimento LGBT+ conquistou espaço para circular demandas. Em uma democracia há mais possibilidades de articular reivindicações ainda não resolvidas. O regime autoritário, para justificar a repressão, tem que ter sempre bodes expiatórios. Durante a ditadura foram corrupção, imoralidade e subversão. Durante o governo de Bolsonaro são ideologia de gênero, feminismo e movimento LGBT+, cotas e povos originários, criticando a possibilidade de esses grupos terem "direitos que não devem ter".

ESTADÃO: Mas a democracia, por si só, já empodera esses grupos? Ou é necessário algo mais?

JG: A democracia é um regime em que há a possibilidade de as pessoas marginalizadas se organizarem e reivindicarem seus espaços na sociedade. Isso se vê claramente com o movimento negro unificado. Cada vez mais, com a democracia, com o acesso a uma mídia sem censura, com participação social e política, esses grupos têm espaço para reivindicar suas demandas e conquistar várias delas ao longo dos anos.

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.