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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Nem todos são iguais perante a lei

Por João Paulo Martinelli
Atualização:
João Paulo Martinelli. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Há uma diferença jurídica entre justificar e explicar. Apesar de consequências semelhantes, justificar é tornar justo, é reconhecer que algo está de acordo com a lei; explicar, em sentido jurídico-penal, é reconhecer algo como desculpável. Em outras palavras, um comportamento ilegal nem sempre se justifica, mas pode ser explicado e, por consequência, desculpado.

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Uma mulher, mãe de cinco filhos, acusada de furtar uma Coca-Cola de 600 ml, dois pacotes de macarrão instantâneo Miojo e um pacote de suco em pó Tang, no total de R$ 21,69 (vinte e um reais e sessenta e nove centavos) foi presa após ser perseguida por policiais. O flagrante foi convertido em prisão preventiva a pedido do Ministério Público, por meio de decisão judicial que a considerou um perigo à sociedade.

A Defensoria Pública fez o pedido de liberdade ao Tribunal de Justiça, com a alegação de que o valor total dos bens é irrelevante para fundamentar a prisão (segundo entendimento dos Tribunais superiores), porém, houve negativa dos julgadores. Os três desembargadores consideraram que a mulher "ostenta passado desabonador" e "dupla reincidência específica", portanto, deveria permanecer presa. Em seu histórico, constam outros furtos, alguns com condenação, não obstante, nenhum delito com qualquer gravidade. Felizmente, o STJ devolveu sua liberdade por entender que o fato, apesar de impróprio, não é sério o suficiente para receber a reprimenda criminal.

O caso concreto é apenas mais um entre tantos em que o sistema de justiça penal mostra sua face mais cruel. Aqui, percebe-se, em dois momentos, o que a psicologia denomina "visão de túnel". Quem sente fome e tem família para sustentar, fica com a visão limitada apenas em busca de seu alimento, sem condições de enxergar além da necessidade; quem faz parte das instituições jurídicas vislumbra exclusivamente um mundo em que todos possuem remuneração garantida ao final do mês - não raro, acima do teto constitucional - e que furtar alimentos é somente uma escolha que merece ser severamente punida.

A atual situação do país pode não justificar furtos famélicos - aqueles em que a finalidade do agente é ter o que comer - mas explica e, ao final, permite desculpar o acusado. Não se está a defender aqui saques e subtração de alimentos por todos que sentem fome, no entanto, a profundidade do problema exige soluções eficazes. Não é a lei penal o remédio adequado, ao contrário, quanto mais gente habitar o sistema carcerário, pior para a sociedade. Já que as autoridades competentes não controlam o que se passa no interior dos estabelecimentos prisionais, as facções mandam e desmandam e, para sobreviver nesse mundo paralelo, o preso deve se tornar membro desses grupos.

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O mais grave está por vir. Além de ignorar os valores insignificantes envolvidos - repita-se, insignificantes para manter alguém na prisão - há um julgamento que extrapola os limites da lei. Fazer menções negativas à personalidade de uma pessoa é imoral e ilegal. Como pode um juiz ou um promotor afirmarem que um indivíduo possui personalidade propensa ao crime ou que impede a convivência em sociedade? O exame da personalidade requer muita habilidade técnica, preparo adequado e tempo para análise. O contato que os profissionais jurídicos mantêm com o acusado é insuficiente para elaborar um juízo de valor, sem contar que a formação técnica é muito diversa.

O juiz deve julgar alguém por um fato determinado, por um comportamento específico. Fazer avaliação da personalidade é ingressar no universo alheio à formação jurídica e uma tentativa de mostrar algo que não se domina. A insignificância dos valores diz respeito ao caso concreto. Se antes o indivíduo praticara outros furtos famélicos, é sinal de que a lei penal não foi capaz de prevenir outros delitos e que o imbróglio está muito além da punição. Enquanto países desenvolvidos aplicam medidas cada vez menos severas no combate à criminalidade[1], o Brasil percorre o caminho inverso. Ao invés de fazer uso de políticas públicas, amplia-se o rigor da lei penal como meio de aplicar pura vingança e o problema continua a crescer.

*João Paulo Martinelli, advogado, mestre e doutor em Direito pela USP, com pós-doutorado pela Universidade de Coimbra, e professor do IBMEC-SP

[1] Apenas para ilustrar, um texto importante sobre o debate sobre a racionalização da lei penal e a importância de outras medidas de políticas públicas: https://www.conjur.com.br/2018-nov-12/mp-debate-flexibilizacao-acao-penal-pequenos-delitos-europa

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