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Nem toda manifestação cultural merece proteção jurídica

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Por Humberto Cunha Filho
Atualização:
Humberto Cunha Filho. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Voltou à cena o debate sobre a vaquejada, com o parecer do Procurador-Geral da República -PGR, Augusto Aras, na ação proposta pelo Fórum de Proteção e Defesa Animal que objetiva ver declarada incompatível com a Constituição Federal a Emenda Constitucional - EC nº 96/2017, pela qual foi definido que "não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos".

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O Chefe do Ministério Público Federal - MPF entende que a mencionada norma é compatível com a Constituição, baseado em um argumento formal e em outro substancial. Formalmente, ele sustenta ser possível a alteração constitucional por entender que ela não se refere a um direito individual, mas a um direito coletivo, e só os primeiros seriam protegidos contra supressão total ou parcial.

Em termos substanciais, entende que a vaquejada é uma manifestação cultural e, em face disso, não apenas deve ser permitida, como incentivada, com base no § 1º do Art. 215, no qual a Constituição determina que "o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional".

Na presente reflexão abstrairei o argumento formal do MPF, em face do seu profundo caráter técnico-jurídico, impróprio para um artigo jornalístico; apenas registro que não concordo com ele, por ter sido desenvolvido somente até o ponto em que favorece a tese do PGR e, por conseguinte, deixou de abordar as afetações indiretas da EC aos direitos individuais e os impactos sobre as cláusulas pétreas implícitas (eu disse que era técnico!). Portanto, dedicarei meus esforços à análise do argumento substancial, porque envolve os valores que estão em disputa entre os que defendem e os que são contra a prática de jogos com animais, o que verdadeiramente interessa à cidadania.

Para defender que a vaquejada é uma manifestação cultural, o PGR baseou-se em textos vinculados a "A Antropologia de Darcy Ribeiro e a Sociologia de Gilberto Freyre", bem como em excerto de voto do Ministro Luís Roberto Barroso, proferido na Ação Direita de Inconstitucionalidade - ADI 4983 (a que declarou a prática inconstitucional), precisamente no trecho em que o mencionado juiz diz: "Reconheço que a vaquejada é uma atividade esportiva e cultural com importante repercussão econômica em muitos Estados, sobretudo os da região Nordeste do País".

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Ao adotar essas bases, é possível que o Procurador-Geral da República tenha feito um esforço em vão, bem como reverenciado o ministro errado, pois Luís Roberto Barroso votou contra a vaquejada. Mais acertada, creio, teria sido uma citação ao voto do Ministro Edson Fachin, o qual foi favorável ao jogo, com base na mesma argumentação ministerial, e em suposta contradição existente no pedido de inconstitucionalidade, ao detectar que "o Ministério Público Federal, na página 6 da inicial, diz: 'A vaquejada, mantendo a tradição cultural à técnica, ...' Portanto, há um reconhecimento na própria petição inicial de tratar-se de uma manifestação cultural. E, nesse sentido, esse reconhecimento parece-me atrair o caput e o § 1º do art. 215 da Constituição Federal".

Tirante o problema da interpretação literal e isolada de dispositivo da Constituição, o possível equívoco substancial de Fachin e de Aras assenta-se na desnecessidade de provar que a vaquejada é uma manifestação cultural, pois não há quem duvide que seja, considerando que os estudiosos do tema entendem que tudo o que o ser humano faz e valoriza é cultura, a exemplo de Terry Eagleton, quando lembra que "a raiz da palavra 'cultura' é colere, o que pode significar qualquer coisa, desde cultivar e habitar a adorar e proteger". No mesmo sentido, Miguel Reale entende cultura como "o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para modificar-se a si mesmo". Todavia, como numerosos pares seus, os dois autores mencionados entendem que colere/cultura passou a significar, no contexto da modernidade e da contemporaneidade, aprimoramento das relações humanas.

Considerando que cada um desses aleatórios exemplos - cultivar, habitar, adorar, proteger, etc. - pode ter algumas manifestações conforme a lei e outras que a violam, o desafio mesmo seria o de saber se essa específica manifestação cultural - a vaquejada - mesmo prolongada no tempo, ainda corresponde a um direito cultural e, em decorrência disso, se pode ser protegida ou, em caso negativo, se deve ser proibida ou, quando menos, desestimulada.

Para encontrar a resposta, entendo ser bem oportuno recorrer a uma teoria culturalista do direito, como a do já citado Miguel Reale, que o percebe a partir das dimensões integradas do fato (a prática contemporânea da vaquejada), do valor (o aprimoramento humano) e da norma (o § 1º do Art. 215 da CF). No caso, aparenta que Ministro e o Procurador trabalharam apenas nos aspectos dos fatos e das normas, esquecendo-se quase que por completo dos valores. Em palavras mais simples: a vaquejada é, sociológica e antropologicamente falando, uma manifestação cultural, mas só mereceria amparo jurídico se respeitasse os valores exigíveis para o reconhecimento de um bem enquanto patrimônio cultural.

E, concretamente, que valores são esses?

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Abstraindo por um momento o suposto conflito da manifestação com os direitos relativos ao meio ambiente, é possível encontrar a resposta na esfera específica dos direitos culturais, observando, por exemplo, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (UNESCO, 2003), incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 2006, segundo a qual "entende-se por 'patrimônio cultural imaterial' as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural".

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Mas para a mesma convenção não basta a descrição formal; é necessário que "este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, [seja] constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana".

O texto normativo emanado da consciência internacional sobre o tema arremata a compreensão de patrimônio cultural imaterial com a restrição de que para os fins da Convenção "será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos e do desenvolvimento sustentável".

Ora, a vaquejada que já foi efetivamente uma manifestação congregadora, agora fere muitos desses preceitos: não tem mais interação com a consciência eco-cultural que permeia a humanidade; deixou de produzir sentimento de identidade e de respeito mútuos para criar grande apartação entre grupos sociais. E note-se que este desgaste não é de agora, considerando que desde 27 de janeiro de 1978 foi submetida à ONU a proposta de uma Declaração Universal dos Direitos dos Animais, em cujo Artigo 10 pleiteia-se que "nenhum animal deve ser usado para divertimento do homem. A exibição dos animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal", o que se ainda não foi transformado em regra jurídica, deveria ser voluntariamente obedecido enquanto imperativo ético de um ser que se julga intelectualmente superior aos demais.

Em termos comparativos, certamente este conjunto de novos valores fez com que a UNESCO, no corrente ano de 2020, sequer admitisse debater as touradas como patrimônio cultural imaterial da humanidade, bem como deu base para que o Parlamento Europeu sobretaxasse todas as atividades relacionadas a esta manifestação arraigadamente ibérica, que por longos anos foi um dos principais ícones da cultura espanhola, fato que confere, neste aspecto, um paralelismo à vaquejada relativamente ao nordeste do Brasil.

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Deste modo, mesmo fazendo parte de importantes quadros memoriais, tanto a manifestação de lá (a tourada), segundo o entendimento da UNESCO, como a daqui (a vaquejada), de acordo com a concepção até agora majoritária do STF, não têm mais espaço normativo ou social para que continuem sendo praticadas. Oxalá em futuro breve se transformem definitivamente em algo que não ultrapasse as páginas dos livros de história.

*Humberto Cunha Filho, professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Coautor e coorganizador do livro Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial: uma análise comparativa entre Brasil e Itália, cuja versão eletrônica pode ser obtida gratuitamente em  epositorio.ufba.br/ri/handle/ri/32295

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