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Não existe história do Brasil sem o povo negro

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Por José Vicente e Eloi Ferreira de Araujo
Atualização:
José Vicente e Eloi Ferreira de Araujo. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

As desigualdades no país, sobretudo, aquelas de natureza racial, tiveram crescimento e ganharam expressiva visibilidade nesse período da pandemia causada pelo coronavírus. As marquises e praças das capitais e de inúmeras cidades estão coalhadas de pessoas que não possuem moradia, emprego e sequer têm condições para realizar uma refeição - todas e todos negros ou quase negros. As milhares de famílias que vivem nas favelas brasileiras tampouco conseguem sobreviver com os parcos recursos do auxílio emergencial que foi concedido, apesar da oposição do atual governo. O socorro vindo de doações e de campanhas de organizações sociais, como a CUFA, é o que tem garantido alimentos a algumas famílias das comunidades. O Brasil voltou a integrar o mapa da fome, do qual havia saído, como resultado do "Fome Zero" no governo do ex-presidente Lula. A situação atual é produto da negligência do governo, bem como o retrato da decisão que o Estado brasileiro tomou há 133 anos, quando após grande mobilização social, foi aprovada a lei áurea, que pôs fim a escravidão, mas não garantiu aos ex-cativos os direitos que eram ofertados aos imigrantes e aos escravocratas.

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As sesmarias (terras concedidas pela Coroa), os créditos, o acesso a escolaridade e à saúde, entre outros direitos, foram impedidos e negados aos recém libertos. O principal debate era sobre indenização ou não aos escravocratas que perderam sua mão-de-obra escrava, quando, na verdade, a discussão deveria ser sobre a indenização àqueles que trabalharam por quase quatro séculos sob regime escravo. Quando a República se estabeleceu, esse tema continuou a ser um tabu, como, aliás, ainda o é, o que fica claro pela oposição, no Brasil, à criação de um museu sobre a escravidão, tal qual os que existem na Inglaterra, África do Sul e em outros países, para que a gravidade daquele período não seja esquecida.

As mortes pela COVID-19 já ultrapassam 530 mil vidas e pesquisas indicam que a maioria foram pessoas negras, que, devido ao abandono histórico de que é vítima a população negra brasileira, foram também as vítimas preferenciais das fake news presidenciais e do mito que pregava tratamento ineficaz.

A lei 12.288, de 20 de julho de 2010, que dispõe sobre o Estatuto da Igualdade Racial, completa onze anos e confirma o acerto da sua aprovação. O Estatuto é a primeira lei positiva de reconhecimento de direitos à comunidade negra, desde a Lei Áurea. Nele, está previsto o instituto das ações afirmativas, tendo sido essa legislação fundamental para o julgamento da constitucionalidade das cotas pelo STF. As cotas no ensino superior público e no serviço público estão, finalmente, levando a cara do Brasil a setores antes limitados a uma elite e, por isso, precisam ser renovadas. O Estatuto contribuiu, ainda, para que os meios de comunicação, as produções televisivas, cinematográficas e de demais meios culturais observassem a inclusão de negras e de negros. Ainda há muito a conquistar-se, sobretudo, no que tange ao fim dos assassinatos da juventude negra e à proteção da matriz cultural africana e das comunidades quilombolas, cotidianamente desrespeitadas. O Estatuto é o instrumento que dá esperança em um futuro melhor e que prevê algum tipo de inclusão, historicamente negada à população negra brasileira e completamente negligenciada no contexto da pandemia. O Brasil precisa assistir à população afro descente, pois, como nos dizia Januário Garcia, mais uma vítima da tragédia que se assola em nosso país nesta pandemia, "existe uma história do povo negro sem o Brasil, mas não existe uma história do Brasil sem o povo negro".

*José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, advogado, doutor em educação e líder do Movimento Ar

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*Eloi Ferreira de Araujo, ex-ministro da Igualdade Racial e embaixador do Movimento Ar

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