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Não cabe ao Judiciário dizer o que é católico ou como se deve professar a sua fé

Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
Rogério Tadeu Romano. FOTO: ARQUIVO PESSOAL  Foto: Estadão

A Segunda Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo proibiu a entidade "Católicas pelo direito de decidir" de usar a expressão "Católicas" em seu nome.

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Por defender a legalização do aborto, a ONG fundada em 1993 e presente em diversos países, deve "adequar" seus estatutos sociais, sob pena de multa diária de R$ 1.000.

Disse bem Luiz Francisco de Carvalho Filho (Inquisidores de Quarteirão, edição da Folha, em 31 de outubro de 2020):

"Não se trata de um triunfo conservador legítimo. É abuso de poder. A liberdade de expressão e o direito de se associar são jogados na lata do lixo.

É como se o Poder Judiciário tivesse legitimidade de impor à pessoa (jurídica ou física, não importa) um mandamento religioso: Você não pode se declarar católico se você é a favor do aborto. Como assim? Você pode usar qualquer outra palavra (veja como sou liberal, desde que você não viole "direito de terceiros", evidentemente), mas você não pode tornar pública a sua crença.

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O Tribunal de Justiça fala em "moral", "bons costumes", "ordem pública", "boa-fé", "transparência" (termos mais adequados para, por exemplo, tratar do auxílio-moradia) quando declara a "notória ilicitude" do uso da expressão "católicas" por entidade que, por defender o direito da mulher interromper a gestação (ainda que nos casos já previstos no Código Penal, como o estupro), "combatem" dogmas católicos.

O autor do pedido da esdrúxula intervenção judicial é o "Centro Dom Bosco", entidade carola e arcaica, "defensora da fé", formada por "soldados de Cristo", inimiga declarada do Supremo Tribunal Federal e de pautas progressistas concebidas para destruir as famílias e a sacralidade da vida humana. No ano passado tentou obter a censura judicial do episódio de Natal do canal de humor Porta dos Fundos, construído em torno de um Jesus homossexual."

O relator do recurso, desembargador José Carlos Ferreira Alves, disse em seu voto que a atuação concreta e a finalidade da associação requerida revelam "pública, notória, total e absoluta incompatibilidade com os valores mais caros adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral e universal".

"Ao defender o direito de decidir pelo aborto, que a Igreja condena clara e severamente, há nítido desvirtuamento e incompatibilidade do nome utilizado em relação às finalidades e atuação concreta da associação, o que viola frontalmente a moral e os bons costumes, além de ferir de morte o bem e os interesses públicos."

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Para o relator, a preservação de tal nome se traduz em "inegável desserviço à sociedade".

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"A liberdade de expressão não estará minimamente prejudicada (não é disso que se está a tratar), podendo a associação requerida defender seus valores e ideias (inclusive o aborto) como bem entender, desde que utilize nome coerente, sem se apresentar à sociedade com nome de instituição outra que adota pública e notoriamente valores flagrantemente opostos, não se olvidando o fato de que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (Artigo 187 do Código Civil)."

Na primeira instância o juiz Rodolfo César Milano, da 43ª Vara Cível de São Paulo, havia negado o pedido do Centro Dom Bosco por entender que não havia legitimidade ativa da entidade para propor a ação porque "somente a autoridade eclesiástica competente tem o poder de representar a Santa Sé na defesa de sua identidade.

Com o devido respeito a decisão afronta à Constituição que preserva cláusula pétrea, uma verdadeira garantia constitucional, a ser preservada.

A liberdade religiosa se inclui entre as liberdades espirituais. Sua exteriorização é forma de manifestação de pensamento.

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A liberdade de crença não se confunde com a liberdade de consciência.

Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969, L.V, 119) ensinava que" o descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir que se tutele juridicamente tal direito ", assim como a liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter crença".

A Constituição do Império não conhecia a liberdade de culto com essa extensão, que é própria do Estado democrático de direito. Só a reconhecia para a religião católica, que, então, era a religião oficial do Estado. A outras eram toleradas apenas "com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de tempo (artigo 5º).

A República, com a Constituição de 1891, estabeleceu a liberdade religiosa com a separação da Igreja do Estado. Isso principiou com o Decreto 119 - A, 7 de janeiro de 1890, da lavra de Rui Barbosa.

A primeira Constituição republicana consolidou essa separação e os princípios básicos da liberdade religiosa.

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Na liberdade de crença entra na liberdade de escolha de uma religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a uma religião alguma, como disse Jacques Robert (Liberté Réligieuse et le Régime des Cultes, 1977, pág. 8, 9, 101), assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de aderir ao agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença.

Na lição de Pontes de Miranda (obra citada, pág. 129),"compreendem-se na liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos próprios da manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para isso.

Determina o artigo 5º inciso VI, que é assegurada, na forma da lei, proteção aos locais de culto e às suas liturgias. Há uma verdadeira garantia constitucional que assegura a liberdade de exercício dos cultos religiosos, sem condicionamentos, e protege os locais de culto e suas liturgias, na forma da lei. A lei poderá definir os locais de culto.

De acordo com o artigo 19, I, da Constituição é vedada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciona-los, embaraçar-lhes o exercício ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Na matéria ainda ensinou Pontes de Miranda (obra citada, tomo II/185):

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"Estabelecer cultos está em sentido amplo: criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou qualquer postos de prática religiosa ou propaganda. Subvencionar cultos religiosos está no sentido de concorrer, com dinheiro, ou outros bens da entidade estatal, para que se exerça a atividade religiosa. Embaraçar o exercício dos cultos religiosos significa vedar ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica ou material, de atos religiosos ou manifestações de pensamento religioso. Há, em relação a isso, o imperativo constitucional da imunidade de impostos com relação a templos de qualquer culto (artigo 150, VI, b da Constituição). Não se admitem relações de dependência ou de aliança com qualquer culto, aliança com qualquer culto, igreja ou seus representantes, não impedindo que existam relações diplomáticas do Brasil com países como o Vaticano.

Afronta-se, outrossim, a liberdade de opinião.

Pimenta Bueno, um dos nossos primeiros comentaristas, já quando analisava a Constituição do Império, em seu Direito Constitucional Brasileiro e Análise da Constituição do Império, exprimiu, com máxima propriedade, lição centenária no sentido de que ¨liberdade de pensamento em si mesmo, enquanto o homem não manifesta exteriormente, enquanto não comunica, está fora de todo o poder social, até então é do domínio somente do próprio homem, de sua inteligência e de Deus.¨

Essa liberdade de expressão de pensamento assume diversas e múltiplas formas, por força da óbvia razão de que são muitos os planos em que o pensamento se exercita como ainda são diversos os meios que existem para a comunicação, como se vê dos estudos recentes que nos levam à complexidade da linguística e da semiótica.

A liberdade de opinião resume a própria liberdade de pensamento em suas várias formas de expressão. Daí que a doutrina a chama de liberdade primária e ponto de partida de outras, sendo a liberdade do indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha, quer um pensamento íntimo, quer seja a tomada de uma posição pública; liberdade de pensar e dizer o que se creia verdadeiro, como dizia José Afonso da Silva (Direito Constitucional positivo, 5ª edição, pág. 215).

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De outro modo, a liberdade de manifestação de pensamento constitui um dos aspectos externos da liberdade de opinião. A Constituição Federal, no artigo 5º, IV, diz que é livre a manifestação de pensamento, vedado o anonimato, e o art. 220 dispõe que a manifestação do pensamento, sob qualquer forma, processo ou veiculação, não sofrerá qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição, vedada qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística.

A liberdade de manifestação de pensamento que se dá entre interlocutores presentes ou ausentes, tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir, de forma clara, a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros.

Ainda se fala em liberdade de expressão intelectual, artística e cientifica e direitos conexos, de forma que não cabe censura, mas classificação para efeitos indicativos (artigo 21, XVI).

Deve-se respeitar a liberdade de expressão, o direito de se expressar livremente, a faculdade de apresentar um pensamento, um dos pilares da democracia.

Não cabe ao Poder Judiciário dizer e impor quem é católico ou como deve professar a sua fé nos termos de ritos bíblicos.

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O julgador deve fazer a subsunção dos fatos à norma jurídica, segundo a Lei e a Constituição e não ao textos religiosos.

Será caso do ente, para tanto legitimado, ajuizar embargos de declaração, no sentido de fazer o devido prequestionamento da matéria (requisito extrínseco de ajuizamento de recurso extraordinário) e, após, levar a matéria para a apreciação do Supremo Tribunal Federal em grau de recurso extraordinário.

Ademais, em sede preliminar, há nítida ilegitimidade da autora, uma vez que somente a autoridade eclesiástica competente tem o poder de representar a Santa Sé na defesa de sua identidade.

A autora não é a entidade responsável para representar a Santa Sé, pessoa jurídica de direito público na matéria.

Há, a meu entender, ilegitimidade ativa ad causam, matéria de ordem publica, que deve ser abordada, ainda em sede de eventuais embargos de declaração, e, se for o caso em recurso extraordinário, lembrando que trata-se de matéria envolvendo efeito translativo de recurso, matéria que pode ser abordada de oficio pela sede recursal competente, até independente de pleito da parte.

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*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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