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Nada será como antes

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Por Jhonata Emerick Ramos e Felipe Tancredi
Atualização:
Jhonata Emerick Ramos. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Imagino que você esteja ansioso para voltar a sua vida como era antes, mas posso afirmar que isso não será mais possível, pois o mundo será outro. Estamos em guerra contra um inimigo invisível. A pandemia da covid-19 aterroriza o mundo - enterraremos sim muitas pessoas, socorreremos os feridos e sairemos dela abalados - mas não é o apocalipse. Talvez, daqui a alguns anos, venhamos nos lembrar do evento como a Terceira Grande Guerra. E, como em qualquer guerra, lembraremos como nossas vidas nunca mais foram as mesmas. Propus-me então o desafio de pensar como é que ela será afinal; e convidei meu sócio Felipe Tancredi, cientista-chefe da RadSquare Tecnologia para participar. Escrevemos esse artigo como um exercício de reflexão, enfatizando que as decisões que estão sendo tomadas agora deveriam levar em conta também o mundo que habitaremos no futuro.

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Precisamos ter em mente que tão marcante quanto a guerra é o período de reorganização social no pós-guerra. A economia mundial, parece não haver dúvidas, sairá abatida. A recessão será mais ou menos penosa a depender do estado civilizatório de cada nação e da estratégia de combate por ela utilizada para resguardar a saúde, riquezas e equilíbrio mental da sua população. A dinâmica de trocas deve passar por mudanças significativas e levará algum tempo para nos adaptarmos ao novo sistema econômico.

O mundo já experimentava um acelerado processo de digitalização, que já vemos se acirrar tremendamente. Compras online, aulas à distância e redes sociais invadiram em definitivo todos os lares. O breve período de confinamento vivido pela maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento promoveu uma avalanche de inclusões digitais. Home office passará a ser a norma. Até o atendimento médico por videoconferência, que há bastante tempo enfrentava dificuldade de emplacar, foi autorizado. Temas como Inteligência Artificial, privacidade de dados e proteção cibernética estarão na pauta do dia, pois a pandemia pode abrir um precedente perfeito para que governos monitorem a saúde de cada indivíduo. Legisladores terão bastante trabalho em criar normas específicas para cada nova forma de convívio e trocas; e a covid-19 tende a ser o ponto de inflexão nessa batalha por dados.  Basta ver como tópicos que normalmente levariam anos para ser debatidos, foram regulamentados em questão de horas ao redor do mundo.

E do ponto de vista emocional - o que esperar? Condições de guerra tais como cerceamento de liberdade, desabastecimento, instalação de hospitais de campanha, (além da inovação de assistirmos estatísticas da morte na TV num tétrico reality show) abalam o estado emocional de qualquer pessoa. Geram medo - um dos piores inimigos da saúde mental. O medo que experimentamos de maneira coletiva nesses poucos dias de pandemia - e que provavelmente ainda veremos intensificado - já se reflete no aumento expressivo de distúrbios de comportamento (tais como TOC, depressão, síndrome do pânico). Se não dermos atenção adequada, assistiremos o número de suicídios disparar e não nos surpreenderíamos se ele superar aqueles observados na crise de 1929.  Ainda é incerto o tamanho da ferida psíquica que a covid-19 nos deixará. Psicólogos e psiquiatras devem se preparar para o trabalho após guerra.

A guerra pela qual passamos é em grande parte conseqüência da falta de preparo do nosso sistema de saúde pública, de um país que ainda dedica poucos recursos à ciência e educação. Mesmo que estejamos diante de um quadro crítico e de demanda anormal, cremos está evidente para todos que a calamidade viceja em países onde os investimentos em saúde têm sido menores que o desejável e recomendável. Estamos sendo forçados a encarar nosso próprio fracasso, que agora tentamos remediar voltando toda nossa atenção à ampliação e modernização dos serviços de saúde. Veremos investimentos massivos em assistência primária, infra-estrutura sanitária e novas tecnologias para universalização do acesso a serviços de saúde. Se tivemos revoluções industriais e guerras que alavancaram toda sorte de tecnologia e negócios, a covid-19 nos levará a um patamar mais avançado do ponto de vista da saúde, além de um criar um sistema mais preparado para choques e momentos de stress como o que estamos vivendo.

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A ciência também deve ser reapreciada. Não só a médica. Quantos não são os cientistas, independentemente do campo de atuação, que estão envolvidos no desafio de encontrar uma saída para essa crise global? É o conhecimento que nos permite domínio de ferramentas, teorias e técnicas, com as quais podemos dar resposta efetiva a uma ameaça iminente. Sempre foi assim. Todavia, essa guerra deixará evidente como nunca o quão vulnerável a falta de preparo e desenvolvimento tecnológico deixam uma nação, mesmo na ausência de um inimigo externo; de como o Brasil, (7º país mais rico do mundo e 5º em extensão) precisa de um plano de desenvolvimento melhor estruturado. Pessoas não sabem se acreditam em políticos ou em cientistas que dedicaram suas vidas ao entendimento de um assunto, deixa claro a necessidade de um país do tamanho do Brasil ter um plano estruturado.

Pessoas darão mais valor à informação de qualidade. Se a discussão sobre "fake news" era assunto em voga, elas devem finalmente sofrer seu revés. Não só através de legislação pertinente, mas pela maior vigilância de leitores e telespectadores, que serão naturalmente mais seletivos. Como disse Churchill, a primeira vítima durante uma guerra é a verdade. Acontece que estamos em plena era digital onde tudo que se diz ou se escreve circula livre e amplamente; e cada detalhe fica registrado para revisão e juízo de todos. Mais dia menos dia teremos um reencontro com o certo e o errado. Com um pouco de esforço seremos capazes de separar as narrativas: de um lado aquelas corajosas e ponderadas, fiéis à verdade - juntamente com enganos genuínos; e de outro, aquelas aferroadas à vaidade, precipitadas, mas sobretudo aquelas contaminadas de inescusável oportunismo político. Afinal, a História nunca perdoou aqueles que manipulam o medo e o desejo para satisfazer seu próprio ego. Só que dessa vez será mais rápido, tão mais rápido quanto um e-mail é comparado com uma carta.

Toda guerra coloca à prova a capacidade das pessoas de viverem com pouco e com poucos. A escassez obriga as pessoas a priorizarem seus gastos e revisarem suas necessidades enquanto que a restrição de mobilidade as leva a dedicar mais tempo junto aos mais próximos. A experiência vindica valoração das pequenas coisas e relacionamentos mais estáveis. Mesmo com a economia recobrada, o prazer que obtemos com consumo de bens e serviços será melhor balanceado com a redescoberta de atividades simples e corriqueiras. Mesmo saindo de casa, conviveremos mais com familiares e grandes amigos.

Guerras também colocam à prova nossa capacidade de solidariedade e espírito coletivo. Em todas elas, sobrevivem e perduram (com melhores condições materiais e mentais) aqueles que se ajudaram. Nesta, a Humanidade inteira se sente ameaçada por um inimigo comum (que, até onde sabemos não é alienígena) Trata-se de um vírus, uma entidade biológica que acomete organismos indistintamente, sem preferência por raça, nacionalidade ou classe social. E o combate tem sido realizado por uma coalizão de forças de cidadãos de vários países. Essa é uma situação muito particular - tem testado espírito coletivo em escala global. A experiência de viver uma ameaça coletiva e de trabalhar em conjunto para combatê-la deve elevar o nível de consciência do planeta. Acreditamos que com o advento da covid-19, solidariedade passará a ser debatida em ambientes de negócio e na academia, deixando de ser virtude reivindicada por congregações ou partidos. Testemunharemos o surgimento de uma nova prática de mercado que, conciliando competição e solidariedade, permitirão empresas se tornarem mais eficientes e rentáveis.

A guerra nunca é uma coisa boa. Ponto culminante de exageros e descuido. O período imediatamente posterior, embora difícil, é um alívio. E o pós-guerra sempre nos traz lições. Preferimos nos ater a essa parte, de forma a trazer uma mensagem de conforto para nos lembrarmos durante os momentos mais duros. A dor é sempre uma oportunidade de aprendizado. Que a perda de tantas pessoas pela covid-19, sejam elas queridas ou desconhecidas, não seja em vão. Momentos de guerra como o que estamos passando são obscuros, mas em breve nos farão repensar nossos hábitos, relações, crenças e desejos. Esperamos ter contribuído com o momento, dividindo uma visão positiva que nós temos sobre resiliência e capacidade das pessoas de se curarem.

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No mundo todo somos conhecidos como um país com belas paisagens naturais e povo receptivo. Temos um povo particularmente brincalhão e cordial. Não sabemos, ainda, se essas características nos deixam mais vulneráveis à tormenta que nos assola ou se nos servirão como imunidade e facilitarão nossa recuperação. Torcemos pela última hipótese.

*Jhonata Emerick Ramos, CEO da Datarisk; Felipe Tancredi, cientista-chefe da RadSquare

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