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MPF errou ao eleger-se proprietário de fundo bilionário anticorrupção

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Por Mércia Carmeline
Atualização:
Mércia Carmeline. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em 27 de setembro de 2018, a Petrobrás divulgou Fato Relevante ao mercado (disponível no site da B3) informando a formalização de acordos com o Departamento de Justiça e Comissão de Valores Mobiliários norte-americanos, com o objetivo de encerrar as investigações daquelas autoridades.

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O Fato Relevante também informou que a Petrobrás celebraria acordo com o Ministério Público Federal (MPF) brasileiro, como condição para que 80% dos valores das multas, acordadas com as citadas autoridades norte-americanas, fosse investido no Brasil (grifo nosso).

Menciona, ainda, o Fato Relevante, que, nos EUA, seriam pagos US$ 170,6 milhões, à razão de 50% para o Departamento de Justiça e 50% para Comissão de Valores Mobiliários. Destinando-se US$ 682,6 milhões (os 80%) às autoridades brasileiras, a serem depositados em um fundo especial e utilizados conforme instrumento a ser assinado com o Ministério Público Federal.

Em 30 de janeiro deste ano, novo Fato Relevante foi publicado, informando que, naquela data, em decorrência do acordo de Assunção de Compromissos, celebrado com o Ministério Público Federal, homologado judicialmente em 25 de janeiro, a Petrobrás havia efetuado o pagamento dos US$ 682,6 milhões.

Informou, também, que, nos termos do acordo, metade do valor depositado seria revertido para um fundo patrimonial, gerido por meio de uma fundação independente, a ser constituída, que investiria em "projetos, iniciativas e desenvolvimento institucional de entidades idôneas, que reforcem a cultura de respeito à legalidade e aos valores democráticos".

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A outra metade, ainda segundo o documento, poderia ser utilizada para atender "eventuais condenações da companhia em demandas de investidores ou para pagamento de possíveis acordos".

A descrição completa da destinação dos recursos pode ser consultada no item 2.3. do referido acordo.

Ora, podemos perguntar, que premissas foram utilizadas pelo MPF para definir que 50% daquele valor seria suficiente para atender condenações da companhia em demandas de investidores ou para pagamento de possíveis acordos?

Não é demais observar que, até que ocorressem as eventuais condenações - transitadas em julgado, porque, antes disso, não se paga nada - ou a formalização de acordos, muitos anos poderiam decorrer. Quem iria gerir esses outros R$ 1.262.810.000 (correspondentes a 50% dos US$ 682,6 milhões, convertidos em reais) nesses anos todos?

Em tempo, o acordo foi assinado por procuradores e por gerente jurídica da Petrobrás e foi homologado judicialmente, conforme informa o Fato Relevante, de 30 de janeiro. Então, vamos pressupor que não houve vícios, nem de representação, nem de decisão na sua formalização e que as disposições do Estatuto Social da Petrobrás, notadamente, as que tratam das competências do Conselho e da Diretoria, foram observadas.

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Isso posto, o MPF elegeu-se a si próprio proprietário da módica quantia de R$ 1.262.810.000,00 (um bilhão, duzentos e sessenta e dois milhões, oitocentos e dez mil reais, utilizando a cotação de R$ 3,70), sob o pretexto de destiná-la, genericamente, a iniciativas e desenvolvimento institucional de entidades e redes de entidades para, resumidamente, reforçar a luta da sociedade brasileira contra a corrupção.

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Proprietário, porque outorgou-se a faculdade de usar, gozar e dispor desses recursos. Poderia ter sido constituído procurador ou custodiante em representação da Petrobrás, mas preferiu mesmo ser o dono.

Não bastasse, menciona o acordo que a administração desses recursos seria feita por entidade, na forma de uma fundação de direito privado mantenedora, a ser constituída, no prazo máximo de 18 meses, após a sua homologação, para a finalidade específica de administrar o fundo patrimonial e veicular o investimento social.

Tal modelo não teria como não ser alvo de críticas. A verdade é que não seria necessário criar fundação alguma para gerir esses recursos, mesmo porque gestão de recursos é atividade normatizada. Bastaria contratar bancos nacionais de primeira linha para geri-los, distribuindo-os em volumes iguais, para instigar a competição entre os gestores e pulverizar o risco.

Instituições financeiras possuem credenciais para gerir recursos, são auditadas interna e externamente, prestam contas aos clientes, ao Banco Central e à Comissão de Valores Mobiliários na atividade de gestão. Portanto, monitoramento e controle nunca iriam faltar.

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Se a destinação de mais de R$ 1 bilhão e 200 milhões para iniciativas educacionais não fosse, por si só, um absurdo, qual a necessidade de criar uma fundação? Mais um cabide de empregos?

Quanto desses recursos seriam destinados ao custo operacional dessa fundação? Para que gastar 18 meses pensando em como criar uma fundação, enquanto esses recursos permaneceriam depositados na Caixa Econômica Federal - e aplicados a que taxa?

Só para fazer um paralelo, a Universidade de São Paulo aprovou, para 2018, um orçamento que previa, para além das despesas com folha de pagamento e que correspondem a 92,8% de sua dotação orçamentária, investimento da ordem de R$ 225 milhões.

Este valor seria para ser utilizado em bolsas e auxílios alimentação, aquisição de livros, transporte e moradia estudantil, além daqueles incluídos nas alíneas assistência médica e odontológica, restaurantes universitários, estágios, educação física e esportes. E o Ministério Público Federal queria gastar R$ 1 bilhão e 200 milhões com divulgação educacional contra a corrupção?

Não digam que essa foi a saída para deixar de remeter esses valores para o exterior. As autoridades norte-americanas não entraram no mérito do acordo, a ser firmado no Brasil, entre a Petrobrás e o Ministério Público Federal.

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Se o acordo tivesse estabelecido que 99,99% dos valores seriam destinados às eventuais perdas, decorrentes das ações judiciais, movidas por investidores ou para pagamento de possíveis acordos, assim seria feito.

Resumindo, nada disso faz o menor sentido. Não cheira bem. Não é eficiente. Não agrega nada ao país, nem a Petrobrás. É mais uma megalomania, uma demonstração de força e de falta de bom senso.

Correto mesmo seria devolver esses recursos para o caixa da Petrobrás, a quem caberia direcionar parte deles, e, se quisesse exagerar, 1%, para suportar os tais custos educacionais e de divulgação. As eventuais perdas por decisões judiciais desfavoráveis devem, em qualquer caso, nos termos das normas contábeis, ser objeto de provisionamento.

Como a ousadia foi muito grande, ao tempo do encerramento desse artigo, a mídia divulgava nota da força-tarefa da Lava Jato informando a suspensão da decisão de criação do estranho fundo/fundação.

Em seguida foi publicado que a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, apresentou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 568 ao Supremo Tribunal Federal, pedindo a anulação da homologação feita pela juíza Federal Gabriela Hardt, da 13.ª vara de Curitiba, do acordo entre o Ministério Público Federal no Paraná e a Petrobrás.

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*Mércia Carmeline, sócia do escritório Filhorini e Carmeline Advogados

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