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Motivação 'ad relationem' e o julgamento do RHC nº 125.461, pelo Superior Tribunal de Justiça

Por Roberto Podval e Luís Fernando Silveira Beraldo
Atualização:
Roberto Podval e Luís Fernando Silveira Beraldo. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Findo o recesso das atividades do Poder Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua função de uniformizar a jurisprudência infraconstitucional do país, se debruçou sobre questão extremamente relevante e controvertida na jurisprudência: a abrangência e possibilidade jurídica da denominada motivação ad relationem, assim denominada porque o julgador, ao fundamentar uma decisão, se socorre exclusivamente de argumentos exarados por uma das partes do processo.

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Não obstante se tratar de discussão exclusivamente técnica na dogmática processual penal, a questão foi catalisada e politizada em virtude dos protagonistas do caso julgado[1], uma vez que envolve investigado que não apenas é Senador da República, mas também  filho do Presidente.

Como por demais noticiado, o Senador Flávio Bolsonaro é investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por suposto envolvimento em esquema denominado "rachadinha", no qual parte das verbas destinada ao pagamento dos salários dos assessores do então Deputado Estadual a ele retornava, por meios tortuosos.

Tortuoso, no entanto, teria sido o expediente utilizado pelo magistrado que na época era responsável pelas decisões do feito: determinou, de uma só vez, a quebra do sigilo bancário de 95 - isso mesmo, noventa e cinco pessoas, dentre físicas e jurídicas -, mediante argumentação consubstanciada em um singelo parágrafo, no qual adota, como razão de decidir, os argumentos lançados pelo Ministério Público em seu pedido[2].

No entanto, o Superior Tribunal de Justiça, por intermédio de sua Quinta Turma, entendeu que tal decisão seria nula, uma vez que não foi cumprido, pelo magistrado, seu ônus constitucionalmente estabelecido de motivar adequadamente sua decisão.

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Com efeito, estabelece a Constituição Federal, em seu art. 93, inciso IX, que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões (...)". Sob um prisma subjetivo, a motivação serve, em primeiro lugar, para demonstrar ao próprio juiz a razão, antes interiorizada em sua consciência, que o levou a decidir dessa ou daquela forma[3]. Por mais amplo que seja o campo de atuação do juiz na função de buscar o sentido da Lei, sua decisão deverá ser sempre fundamentada e representará a única solução possível para a situação determinada, segundo seu entendimento.

Objetivamente, motivação serve para convencer as partes das razões da decisão, de forma a que fique claro que o resultado do processo, longe de ser o resultado da sorte ou do acaso, representou a verdadeira atuação da lei sobre os fatos levados a juízo[4]; permite-lhes, ainda, saber se a decisão foi o fruto da vontade pessoal do magistrado ou se representa a vontade da lei aplicada ao caso concreto, resguardando a independência e a imparcialidade do julgador[5]. E, também, a motivação tem como função possibilitar o controle crítico da decisão, permitindo o seu reexame meio da interposição do recurso ou do remédio constitucional adequado.

De se ver, portanto, que nada disso foi observado pelo magistrado. A motivação serviu, no caso, apenas para convencer o próprio Ministério Público - já convencido, uma vez que seus argumentos foram utilizados como se palavras do juiz fossem. Não se prestou para esclarecer aos investigados, ou mesmo à própria sociedade, os motivos que levaram o juiz a quebrar o sigilo bancário, em um singelo parágrafo, de quase cem pessoas.

A motivação ad relationem, como afirma Antonio Magalhães Gomes Filho[6], se trata de "expediente muito utilizado na prática judiciária, e até compreensível diante das exigências de economia processual e de uma prestação jurisdicional mais rápida". No entanto, prossegue, "não é possaível aceitá-lo sem fundadas restrições", estabelecendo algumas condições mínimas - três requisitos - para o seu emprego e validade.

Interessa-nos, aqui, o terceiro requisito, que seria a legitimidade do autor do texto referido na decisão, não se admitindo a motivação ad relationem a atos processuais oriundos de sujeitos diversos do juiz. E, especificamente quanto às referências, pelo magistrado, a peças do Ministério Público, afirma o citado autor que "essa prática, além de não atender à apontada exigência de legitimidade, transferindo o ônus de motivar a sujeito diverso, também pode comprometer um dos objetivos processuais da motivação, que é assegurar a imparcialidade da decisão, pois não é certo que as próprias razões do provimento sejam dadas por uma das partes."[7]

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Posto isto, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça andou bem ao decidir pela nulidade da decisão de primeira instância. A decisão em comento se presta, na verdade, a dois fins: por um lado, dignifica a atividade jurisdicional, dando-lhe destaque e relevo, porque a atividade jurisdicional, ato indelegável e complexo, não pode ser reduzido a mero carimbo ou simples chancela da pretensão de uma das partes; e, por outro, demonstra que independentemente de quem sejam as partes - gostemos ou não delas - os princípios constitucionais devem sempre prevalecer.

*Roberto Podval, advogado criminalista. Mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra

*Luís Fernando Silveira Beraldo, advogado criminalista. Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo

[1] AgReg no RHC 125.461. STJ, 5ª. Turma, j. em 23/02/2021, DJe de 08/03/2021. Íntegra do acórdão disponível em www.stj.jus.br.

[2] Íntegra da decisão disponível em https://www.conjur.com.br/2019-mai-15/veja-decisao-determinou-quebra-sigilo-flavio-bolsonaro

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[3] Cf. ROGÉRIO LAURIA TUCCI e JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI. Constituição de 1988 e processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 74.

[4] Cf. ROGÉRIO LAURIA TUCCI e JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI. Constituição de 1988 e processo, cit., p. 74.

[5] Cf. ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO. A motivação das decisões judiciais. São Paulo: RT, 2001, p. 96-107.

[6] ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO. A motivação das decisões judiciais, cit., 2001, p. 199.

[7] ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO. A motivação das decisões judiciais, cit., p 202-202.

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