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Moro não cometeu o crime de denunciação caluniosa

Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
O presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro Sérgio Moro. Foto: Adriano Machado / Reuters

I - O FATO 

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O presidente da República está sujeito às consequências jurídicas e políticas de seus próprios atos e comportamentos relacionados ao exercício da função. O presidente da República -- que também é súdito das leis, como qualquer outro cidadão deste país -- não se exonera da responsabilidade penal emergente dos atos que tenha praticado. A autorização da Câmara, por 2/3 de seus membros, refere-se a abertura de ação judicial, não para investigação.

Com esse entendimento, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, autorizou a abertura de inquérito para apurar as condutas do presidente Jair Bolsonaro e declarações do ex-juiz federal Sergio Moro ao anunciar sua demissão do Ministério da Justiça.

De acordo com o PGR, as declarações de Moro podem resultar em, pelo menos, oito crimes: falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de justiça, corrupção passiva privilegiada, denunciação caluniosa e crime contra a honra.

"A dimensão dos episódios narrados revela a declaração de ministro de Estado de atos que revelariam a prática de ilícitos, imputando a sua prática ao presidente da República, o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de denunciação caluniosa", aponta o PGR.

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II - O CRIME DE DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA

Com o devido respeito não há que falar em crime de denunciação caluniosa.

Moro não solicitou a abertura de inquérito. Quem a solicitou foi o procurador-geral da República.

O crime de denunciação caluniosa é delito contra a Administração da Justiça, previsto no artigo 339 do Código Penal, crime de ação penal pública incondicionada.

A ação indicada é dar causa, que tem a significação de provocar, de motivar, originar.

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Ensinou Guilherme de Souza Nucci (Código penal comentado, 8ª edição, pág. 1124) que se trata de um crime complexo em sentido amplo, constituído, em regra, de calúnia e da conduta lícita de levar ao conhecimento da autoridade pública, delegado, promotor, juiz, a prática de um crime e sua autoria. Portanto, se o agente imputa falsamente a alguém a prática de um fato definido como crime, comete o delito de calúnia. Se transmite à autoridade o conhecimento de um fato criminoso e do seu autor, pratica conduta definida no artigo 5º, § 3º, do Código de processo penal. Entretanto, a junção das duas situações(calúnia + comunicação à autoridade) faz nascer o delito de denunciação caluniosa, de ação pública incondicionada, porque está em jogo o interesse do Estado na administração da justiça.

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Ao que se sabe, o ex-ministro Moro não comunicou formalmente o fato à autoridade.

Ora, quem provocou a instauração do inquérito foi o procurador-geral da República e não o ex-ministro da justiça.

A consumação do crime se dá com a instauração de inquérito ou com a propositura de ação penal contra a vítima, como exemplo. Assim, se chegou a ser aberto inquérito, somente após o seu arquivamento será punível qualquer iniciativa no sentido do processo por denunciação caluniosa. Se houver ação penal, somente após o seu término, com a absolvição irrecorrível do acusado, que, por si só, não será decisiva para estabelecer a culpabilidade do denunciante, já que a absolvição pode não corresponder a uma declaração de inocência. O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no sentido de exigir o prévio arquivamento do inquérito, como informou ainda Heleno Cláudio Fragoso(Jurisprudência criminal, nº 181). Mas a tentativa é admissível. Para Paulo José da Costa Jr.(obra citada, pág. 543) será preferível aguardar a decisão final do processo, reconhecendo a inocência do acusado, se tiver sido proposta contra ele a competente ação penal. Mas, nem sempre a absolvição corresponde a uma proclamação de inocência do acusado. Assim se tiver sido instaurado inquérito policial, somente após o seu arquivamento terá início o processo por denunciação caluniosa.

Exige-se como elemento do tipo o dolo direto em relação ao conhecimento da inocência do acusado, como disse Nilo Batista(O elemento subjetivo do crime de denunciação caluniosa, 1975). Faz-se necessário que o agente saiba, sem qualquer dúvida, que a acusação é falsa, agindo de má-fé quem não se exclui pela forma dubitativa da denúncia. O dolo eventual não basta(RT 507/373; 515/331). É a vontade consciente dirigida à provocação de investigação policial e ainda administrativa ou processo contra alguém, atribuindo-lhe crime de que o sabe inocente.

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Como disse ainda Heleno Cláudio Fragoso(obra citada), desde que a ação seja praticada com o fim de determinar a instauração de investigação ou processo judicial(dolo específico), "são irrelevantes os fins ou motivos do agente". Já o erro sobre a inocência do acusado ou a dúvida ou suspeita devem excluir o tipo. Não basta o dolo superveniente a (presentação de queixa de boa-fé e posterior verificação da inocência do acusado), mesmo que o agente se cale ou não esclareça o seu equívoco, pois o crime não pode ser praticado por omissão, mas sim por comissão. De nenhum efeito, será a retratação do agente após a instauração de inquérito, em virtude de imputação caluniosa, pois terá ocorrido após a consumação do crime, podendo ser interpretado como arrependimento posterior(artigo 16 do Código Penal), se tiver sido realizada antes da denúncia. Por sua vez, como acentua Paulo José da Costa Jr.(obra citada, pág. 544) "se o denunciante, ao revés, estiver convencido, da inocência do acusado no momento da apresentação da denúncia, verificando-se ulteriormente a sua culpabilidade, o crime será putativo. Isso porque o fato deverá ser objetiva e subjetivamente falso e a falsidade, na presente hipótese, mostrou-se inexistente no campo objetivo. Mas, se a pessoa for denunciada por erro de nome ou por outra circunstância relevante, uma pessoa em lugar do verdadeiro culpado, estará excluído o dolo".  Desta forma, é mister que a acusação seja objetiva e subjetivamente falsa, isto é, que esteja em contradição com a verdade dos fatos e que haja por parte do agente a certeza da inocência da pessoa a quem se atribui a prática de crime. Sem essa certeza não se configura a denunciação caluniosa(RF 248/441, dentre outros).

Para que se possa falar em configuração do delito de denunciação caluniosa, não é suficiente que os fatos atribuídos ao acusado sejam falsos, sendo imprescindível que agente tenha pleno conhecimento da inocência do acusado, isto é, que saiba da falsidade da imputação realizada. Assim, é necessário o dolo direto por parte do agente, exatamente como ensina Eliane Alfradique ("in" "O elemento subjetivo no crime de denunciação caluniosa", extraído do endereço eletrônico www.direitonet.com.br):

Assim há atipicidade na conduta narrada de denunciação caluniosa.

E o que falar quanto ao depoimento do ex-ministro, em 2 de maio do corrente ano, à Polícia Federal, em sede do inquérito aberto, em que, segundo se informa, fez afirmações com relação a conduta do presidente da República? Haveria aí, por conta dessas possíveis informações, um crime de denunciação caluniosa?

Há se entendeu que não comete crime de denunciação caluniosa quem, em interrogatório, atribui falsamente a outrem a autoria ou a coparticipação, justificando-se a exclusão pelo direito de autodefesa(RT 504/337, 550/357, 575/342, dentre outros).

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Adverte Paulo José da Costa Jr.(obra citada, pág. 543) que se a denunciação caluniosa verificar-se durante o interrogatório, poder-se-á falar em calúnia, jamais em denunciação caluniosa, lembrando Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, volume II, pág. 460).

III - O CRIME DE CALÚNIA

Caso o inquérito, como procedimento investigatório criminal, seja arquivado, a pedido do procurador-geral da República, poderá o ex-ministro da justiça responder pelo crime de calúnia, crime contra a honra.

Na calúnia, a ação incriminada consiste em imputar a alguém falsamente a prática de um crime.

O fato atribuído, na calúnia, deve ser um crime, isto é, uma conduta penal vigente definida como crime. Assim, a imputação de contravenção pode se caracterizar em difamação. Nas mesmas penas do crime de calúnia incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala e divulga. Na redação do Anteprojeto, há que segue, no artigo 136,§ 1º: ¨Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a divulga."

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Na identificação do que se deva entender por honra, a doutrina, de forma tradicional, distingue dois diferentes aspectos: um subjetivo, outro objetivo. Subjetivamente, a honra seria o sentimento da própria dignidade; objetivamente, reputação, bom nome e estima no grupo social.

Bem, se tudo aquilo que foi dito pelo ex-ministro da justiça significou um ataque à honra do presidente da República, então, há o caminho de uma ação penal pública condicionada à requisição do ministro da justiça.

A ação penal pública dependente de representação é ainda chamada de secundária. Nessa hipótese de ação penal, dependente de representação, a ação continuará sendo pública, isto é, seu exercício é cometido ao Ministério Público, instituição permanente que defende os interesses da sociedade, mas esse não poderá promovê-la enquanto não for satisfeita condição.

Na ação penal pública condicionada, que é titulada pelo Ministério Público, justifica-se o fato de ser ela condicionada a um permissivo(representação, requisição), externando pela vítima ou por seu representante legal, a ofensa que se fez a ela em sua intimidade, situação que é tecnicamente denominada de representação. Pode ainda a permissão ser dada na forma de requisição oriunda do Ministro da Justiça como se tem por exemplo nos crimes cometidos contra a honra do Presidente da República e do Chefe do Governo estrangeiro(artigo 114, inciso I, combinado com o artigo 145, parágrafo único do Código Penal). A representação é uma condição de procedibilidade. Não se trata de condição objetiva de punibilidade.

Ora, se houve, ou se houver ataque à honra do presidente da República, caberá a ele, através de requisição do ministro da Justiça, tomar a providência cabível de encaminhar requisição ao presidente da República, não cabendo falar em iniciativa imediata do chefe do Parquet.

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*Rogério Tadeu Romano, procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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