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Modulação de efeitos e o 'risco de excessivo acesso à Justiça'

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Por Maurício Luís Maioli
Atualização:
Maurício Maioli. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A quantidade de um direito fundamental pode ser algo ruim? A mera possibilidade de as pessoas buscarem a Justiça poderia ser motivo para que essas mesmas pessoas tenham o seu direito de acesso à Justiça negado?

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A resposta é óbvia: sim! Ao menos no entender de uma recentíssima decisão do STF. Ocorreu no julgamento sobre a modulação de efeitos da decisão que determinou a incidência do ISS, em vez de ICMS, sobre softwares.

O argumento apresentado pelo Exmo. Ministro Dias Toffoli, ao fundamentar a modulação proposta, foi o seguinte: "(...) mantendo-se hígidos os pagamentos efetuados até a véspera da publicação da ata de julgamento, para se evitar discussão de repetição de indébito que criaria milhares e milhares de ações na Justiça.(1)"

Estamos diante do estranho caso em que o risco do exercício de um direito é motivo para a sua vedação.

Tal fundamentação causa preocupação e espanto. Esse fato demonstra que a modulação de efeitos das decisões em matéria tributária está sendo utilizada de forma exagerada e sem o devido cuidado técnico. O que se viu nesse julgamento, em especial, foi a maior preocupação em como a modulação seria feita, em vez de o porquê ela seria adotada.

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Discordamos desse argumento, que denominamos de "risco de excessivo acesso à Justiça" por, ao menos, cinco razões, abaixo descritas.

1. Supremacia da Constituição: Existe regra clara na Constituição Federal que prevê o direito fundamental de acesso à Justiça - Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Alguns o chamam de princípio da Universalização do Acesso à Justiça. Sendo assim, não pode a lei, ou interpretação concedida a ela por um tribunal, peremptoriamente afastar a sua aplicação com o fundamento de que o risco de excessivo acesso à Justiça não seria bem-vindo.

2. A frequência de uso um direito não o extingue. A proibição da fruição de um direito não pode ser provocada pelo risco de que vários contribuintes também façam uso do mesmo direito. Não se sustenta o raciocínio de que a quantidade do exercício de direito fundamental tornaria esse direito fundamental vedado. É como se em face do risco de toda a população comprar um imóvel, o direito de propriedade passasse a ser proibido para aqueles que não iniciaram as negociações da compra de seu imóvel até hoje. Direitos fundamentais não perdem sua eficácia pela quantidade de seu uso.

3. Exercício de um direito já reconhecido: Um direito já reconhecido (tributo declarado inconstitucional) não pode ter menor força do que um direito ainda não reconhecido (alegação de inconstitucionalidade de um tributo). Mas é justamente o que ocorre aqui. Veja-se que a decisão proibindo novas ação de repetição de indébito só ocorreu após o reconhecimento definitivo de inconstitucionalidade de um tributo. Antes desse reconhecimento, o acesso à Justiça estava garantido. Ou seja, se o acesso à Justiça é considerado direito fundamental para se buscar o reconhecimento de um direito (alegação de inconstitucionalidade), esse acesso à Justiça não pode ser vedado pelo fato de que o direito já está reconhecido (tributo já declarado inconstitucional).

4. Redução de litigiosidade. A modulação é o que estimula a litigiosidade, pois incentiva o ajuizamento antes do correspondente julgamento do Leading Case. Após firmado o precedente, ações posteriormente ajuizadas serão julgadas pelos Tribunais de maneira mais rápida e fácil, afinal, já se tem uma regra clara definida pelo Supremo. A análise jurisdicional será apenas de aplicação do precedente ou de seu distinguishing.

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5. Incentiva o inadimplemento de tributos: A modulação nesse sentido acaba premiando o contribuinte que não paga seus tributos, e sofre uma execução fiscal que acabará sendo extinta. Ao passo que pune o contribuinte que sempre pagou o tributo e não protocolou ação, confiando e esperando por uma orientação definitiva do STF, o guardião da Constituição.

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A modulação de efeitos nem poderia ser aplicada contrariamente ao contribuinte para casos tributários, visto que ela se baseia na Segurança Jurídica e tal segurança é um direito de defesa do contribuinte em face do Estado, e não o contrário. Nos dizeres de Ávila, "A Segurança Jurídica, tal como posta na CF/88, não pode ser utilizada pelo Estado para suportar a restrição dos direitos fundamentais de liberdade"(2).

Todavia, dado que ela vem sendo utilizada, ela deveria ao menos ser aplicada com rigor técnico e mediante a análise adequada de todos os fundamentos que podem embasá-la.

Talvez o argumento, aqui rebatido, de "risco de excessivo acesso à justiça" tenha sido mal colocado no julgamento. Talvez o argumento seja a preocupação com a devolução em si dos valores por meio da repetição de indébito e não o risco de litigiosidade.

Mesmo concedido esse benefício da dúvida, o argumento para a modulação acabaria sendo aquele de "impacto nas contas públicas". O qual não se sustenta, como já discorremos(3) anteriormente, por diversas razões.

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A Segurança Jurídica visa a assegurar direitos fundamentais, e não a vedá-los pelo risco de sua excessiva utilização.

*Maurício Maioli, sócio de Tributário do Feijó Lopes Advogados. Advogado. Coordenador e professor da Especialização de Direito e Gestão Tributária da Unisinos/RS. Professor de Direito Tributário e mestre em Direito pela UFRGS

[1] O acórdão da ADI 1945 e ADI 5659 ainda não estão publicados, mas se pode conferir o próprio julgamento disponibilizado pela página do STF no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=gSIRRCVa-Hw, a partir do minuto 1:10:00.

[2] ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 4. ed., rev., atual. e ampl. - São Paulo: Malheiros 2016.

[3] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/03/16/o-fim-do-direito-tributario.ghtml

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