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Meio de pagamento não pode ser responsável pelo ICMS do estabelecimento vendedor

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Por João Paulo M. Cavinatto , Daniel Loria e Rafaela Canito
Atualização:
João Paulo M. Cavinatto, Daniel Loria e Rafaela Canito. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Com os crescentes avanços tecnológicos e acessibilidade da população à internet, o comércio eletrônico vem gradativamente ganhando espaço no Brasil e no mundo, trazendo a reboque um sem número de desafios tributários que vão desde dificuldades na fiscalização pelo Poder Público de operações realizadas em ambiente digital até novas dinâmicas de negócios que ignoram fronteiras físicas - como é o caso da comercialização de mercadorias digitais.

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Esses desafios decorrem sobretudo da ausência de tratamento pelo sistema tributário tradicional e revelam cada vez mais a urgência de uma reforma tributária eficaz que acomode as novas tecnologias e seus impactos sobre as relações de consumo.

Enquanto a prometida reforma não vem, fato é que as medidas de combate à crise gerada pela pandemia do Covid-19, ao inibirem o comércio tradicional em lojas físicas, trouxeram ainda mais protagonismo às operações realizadas via comércio eletrônico, o que vem estimulando uma movimentação preocupante por parte dos Estados brasileiros.

Para prevenir potencial perda de arrecadação de ICMS em virtude dos desafios tributários inerentes a esse processo de digitalização acelerada das atividades comerciais, no fim de abril, o Rio de Janeiro, seguindo o exemplo de outros Estados como Bahia, Ceará, Mato Grosso e São Paulo, aprovou a Lei Estadual nº 8.795, por meio da qual, dentre outras providências, atribuiu responsabilidade tributária às plataformas digitais (marketplace) que operacionalizem transações financeiras em determinadas operações por elas intermediadas.

Essa está sendo, inclusive, a linha adotada em âmbito federal no Projeto de Lei 3.887/2020, que cria a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços - CBS em substituição ao PIS e à Cofins. É atribuída responsabilidade tributária às plataformas digitais nacionais em operações de venda por pessoa jurídica no mercado interno não acobertadas por documento fiscal e às plataformas digitais estrangeiras em operações de importação de bens e serviços por pessoas físicas ou jurídicas. O argumento é de que tal medida seguiria recomendações da OCDE para adequação do sistema de tributação do consumo à economia digital.

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Sem entrar no mérito da legitimidade da responsabilização tributária dessas plataformas no ordenamento jurídico brasileiro, o Rio de Janeiro foi além, incluindo entre os responsáveis tributários também as administradoras e credenciadoras de cartões de crédito e débito, que sequer figuram como contribuintes do ICMS. Na realidade, as administradoras e credenciadoras de cartão atuam meramente na cadeia de agentes de pagamento e, por essa razão, não possuem qualquer ingerência sobre o negócio ou o ato mercantil que gera a obrigação de recolhimento do imposto.

Embora a Lei Fluminense ainda dependa de regulamentação para que passe a valer, o debate acerca dos limites constitucionais e legais para que um Estado atribua responsabilidade tributária a terceiros deve ser levantado desde já, sob pena de, no afã arrecadatório do Poder Público, proliferarem medidas estaduais de responsabilização de pessoas sem qualquer vinculação com a realização do fato gerador do imposto.

A vinculação do sujeito com o fato gerador do tributo é requisito fundamental exigido pelas leis complementares que regulamentam o tema. Inclusive, a leitura combinada do Código Tributário Nacional com a própria Lei Kandir demonstra que, para que seja possível atribuir responsabilidade tributária a terceiros, além da vinculação com o fato gerador, é essencial que o terceiro seja contribuinte do imposto ou, ao menos, depositário das mercadorias comercializadas e, além disso, pratique atos ou omissões que concorram para o não recolhimento do tributo.

Ora, administradoras e credenciadoras de cartões não são contribuintes do ICMS, não atuam como depositárias das mercadorias comercializadas e sequer têm controle sobre a natureza das operações, cujos pagamentos são realizados pelos meios que disponibilizam.

O portador passa o seu cartão no equipamento instalado no estabelecimento comercial cadastrado com a credenciadora (maquininha POS, TEF, VAN e outras). A partir deste momento, há um fluxo financeiro que, resumidamente, envolve o pagamento do valor bruto pelo portador (no débito ou crédito) e a liquidação financeira do valor da transação, menos uma taxa, para o estabelecimento (no prazo previsto na regulamentação). A credenciadora do cartão retém uma parte da taxa cobrada do estabelecimento, não podendo deixar de liquidar o valor da transação, não tendo capacidade econômica para suportar o encargo do ICMS.

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A credenciadora, portanto, não tem ingerência na atividade empresarial do estabelecimento, nem muito menos conhecimento suficiente acerca do cumprimento das obrigações fiscais em cada município e estado em que os estabelecimentos da sua rede operam.

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Tamanha a relevância desse tipo de medida e exatamente para prevenir abusos do legislador ordinário e do Poder Executivo é que a Constituição Federal delega à lei complementar a competência para tratar da definição de sujeito passivo de tributos. No Brasil, a Constituição Federal exige quórum de maioria absoluta dos parlamentares para aprovação de leis complementares, enquanto a lei ordinária exige apenas a maioria simples para ser aceita.

Assim, a atribuição de responsabilidade a terceiro não contribuinte do ICMS e não vinculado à realização do fato gerador do imposto, como é o caso das administradoras e credenciadoras de cartões de crédito e débito, é não apenas ilegal, como também inconstitucional e deve ser completamente rechaçada.

*João Paulo M. Cavinatto é advogado e sócio da área de Direito Tributário no BMA - Barbosa, Müssnich, Aragão

*Daniel Loria é advogado e sócio da área de Direito Tributário no BMA - Barbosa, Müssnich, Aragão

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*Rafaela Canito é advogada da área de Direito Tributário no BMA - Barbosa, Müssnich, Aragão

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