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Medidas de enfrentamento da covid-19 devem afastar aplicação de multas tributárias

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Por Adriana Stamato , Horácio Almeida Neto e Maria Rita Ferragut
Atualização:

Em tempos de coronavírus (covid-19), o contribuinte pode ser multado por ter deixado de cumprir, no tempo regular, suas obrigações tributárias? Entendemos que, em muitos casos, não.

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Com o objetivo de incentivar o isolamento da população para tentar conter a pandemia decretada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o Governo Federal adotou diversas medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional (Lei nº 13.979/20). Se alguns países como Itália e Espanha já decretaram quarentena para seus moradores, o Brasil ainda não obrigou as pessoas a ficar em casa. Ainda assim, diversas empresas brasileiras estão adotando tal prática voluntariamente, e implantando o trabalho remoto para seus funcionários (home office).

Muitos Estados brasileiros vêm adotando medidas semelhantes para a prevenção ao contágio e enfrentamento da propagação decorrente da covid-19, tais como a suspensão de aulas na rede pública e privada, o fechamento de academias e shopping centers e a redução da capacidade de atendimento de bares e restaurantes. O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, já determinou que o servidor público passe a exercer suas funções em trabalho remoto, "mediante a utilização de tecnologia de informação e de comunicação disponíveis".

Nesse contexto, é previsível que o afastamento de funcionários inviabilizará, ou ao menos prejudicará, o cumprimento de obrigações tributárias principais e acessórias, seja pela redução de pessoal, seja pela inexistência de acesso remoto aos sistemas de apuração de tributos. Não percamos de vista que no Brasil há falta de computadores suficientes à demanda, assim como não há regras para uso seguro de ferramentas digitais, que não coloquem as informações confidenciais do contribuinte, de seus clientes e dos próprios trabalhadores em risco.

Portanto, é de se esperar um quadro involuntário de atraso e inadimplemento, assim como a sanção de tais omissões, com a imposição de penalidades de natureza tributária, já que, dentre as medidas emergenciais anunciadas pelo Governo Federal em 16/03/20, nada há sobre a postergação de obrigações tributárias ou anistia de eventuais multas.

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Ora, é sabido que a obrigação tributária é objetiva (art. 136 do Código Tributário Nacional), o que significa que, independentemente da vontade ou da condição do contribuinte, o tributo deve ser pago no prazo legal, sob pena de multa. Entretanto, a situação excepcional pela qual estamos passando induz a uma conclusão diferente.

Primeiramente, o direito disciplina apenas condutas possíveis, já que as impossíveis não são passíveis de regulamentação. Nessa medida, não se trata de defender a inadimplência generalizada, que ocasionaria um mal terrível à arrecadação e a tantos contribuintes que se esforçam para cumprir com suas obrigações legais. O que se coloca, isto sim, é a necessidade da ausência de punibilidade pelo descumprimento da obrigação, diante da impossibilidade de conduta adversa.

Há na legislação tributária brasileira mecanismos que flexibilizam a caracterização do ilícito tributário quando comprovada a ocorrência da força maior, o que se dará com a necessidade de o contribuinte afastar temporariamente a força de trabalho imprescindível para o cumprimento das obrigações tributárias, sem que se possa pressupor qualquer conduta intencional do devedor, visando a postergação ou o inadimplemento dos tributos.

O caso fortuito ou força maior é caracterizado no Código Civil Brasileiro como "fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir", sendo causa de exclusão de responsabilidade do devedor pelos prejuízos dele resultantes.

Alguns países como China reconheceram a pandemia decretada pela OMS como evento de força maior. No Brasil a discussão ainda é recente, mas as determinações e os efeitos advindos do Estado de Emergência - e que poderão ser tornar ainda mais rígidos para conter a pandemia - poderão ser utilizados para esta caracterização.

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Temos que refletir seriamente sobre o assunto. O Brasil é seguidamente apontado em pesquisas do Banco Mundial e da PWC como recordista em tempo dispendido em atividades de pagamento de tributos. Das 2600 horas em 2016, o número caiu para 1500 em 2020, mas ainda assim o país continua dentre os últimos no 'ranking'. A despeito do pioneirismo do país na digitalização da atividade fiscal, as empresas ainda demoram quase 6 vezes mais que a média mundial, de 236 horas, segundo a mesma pesquisa.

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Documento

Paying Taxes 2020

Já de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação de 2019 ("IBPT" -https://ibpt.com.br/noticia/2627/Empresas-gastam-1-958-horas-e-R-60-bilhoes-por-ano-para-vencer-burocracia-tributaria-apontam-pesquisas), as empresas brasileiras se submetem a 97 obrigações acessórias. O custo para o cumprimento dessas obrigações chega a 1,5% do faturamento das empresas.

As potenciais consequências decorrentes das constatações descritas acima são o alto custo operacional para a preparação e apresentação de deveres instrumentais; o custo adicional na análise da consistência das informações prestadas nas diversas declarações fiscais e o aumento de risco de existência de informações incoerentes ou conflitantes.

Por onde quer que se olhe, com ou sem sistemas informatizados e confiáveis, é necessária a intervenção humana para que as obrigações acessórias sejam cumpridas. Nessa medida, como pretender que os contribuintes cumpram com suas obrigações remotamente, se não existem computadores em número suficiente ao de funcionários que deverão ser afastados? E se em muitos casos sequer existe um sistema de acesso seguro?

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A conclusão é uma só: as empresas não conseguirão cumprir com suas obrigações no prazo legal, e, salvo na hipótese de algum ato normativo geral prorrogando o prazo para cumprimento das obrigações e recolhimento de tributos - como ocorreu recentemente com o anunciado pacote de manutenção de empregos, em que o governo pretende suspender, por três meses, as contribuições dos empresários para o FGTS e da parte da União no Simples Nacional - ou decisão judicial acolhendo o pleito do contribuinte, as penalidades por eventuais falhas, atrasos ou incorreções, excessivas e muitas vezes calculadas com base na operação e no faturamento, serão aplicadas.

É por isso que defendemos a necessidade de revisão dos prazos para cumprimento de obrigações principais e acessórias, ou eventual anistia em caso de aplicação de penalidades. Isso não seria inédito, pois já ocorreu em situações de calamidade pública, como enchentes, enxurradas ou catástrofe climática (Decreto n. 41.576/97, do Estado de São Paulo, e Decreto 44.532/17, de Pernambuco).

O Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/09), por exemplo, prevê que a responsabilidade pelos tributos no caso de extravio de mercadoria importada, poderá ser excluída nas hipóteses de caso fortuito ou força maior. A própria Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), também prevê a força maior como motivo para rescisão do contrato com a Administração Pública. A jurisprudência dos Tribunais Superiores também já possui o entendimento de que caracterizada a força maior, ela é causa de excludente da responsabilidade, ainda que seja a tributária.

Portanto, é necessário equilibrar a capacidade sancionatória das autoridades fiscais, sem a qual elas não têm os meios necessários para fiscalizar o recolhimento dos tributos devidos, com as garantias constitucionais que respaldam os contribuintes, dentre as quais se destacam a proporcionalidade e a razoabilidade na atuação estatal.

A situação que vivemos é extrema, e as normas não podem sancionar aquele que, para cumprir com normas de saúde pública prioritárias no momento, não tiver como adimplir tempestivamente com a obrigação tributária.

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*Adriana Stamato, Horácio Almeida Neto e Maria Rita Ferragut, sócios da área de tributário do Trench Rossi Watanabe

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