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Luto ou luta?

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Por Maria Francisca Mauro
Atualização:
Maria Francisca Mauro. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Há um front brasileiro diário em que as perdas permeiam todos e o que antes era um "mal sabido", se tornou um "mal sentido". Sentido com dor em um cerco de conhecidos, familiares, ou mesmo dentro da própria casa, em que a morte toma uma face, um nome e até mesmo invade algumas.

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Sem respeitar, os que sempre contaram com "seus planos de saúde" e nunca aventaram o que seria não ter vaga. De repente a rotina da saúde pública foi desvelada para os que sempre tiveram acesso, ou mesmo, nunca haviam se dado conta que tinham acesso. Sim, a falta não é igual para todos.

Sinto falta da alegria, outros têm fome mesmo. Daquelas que arrasa, entristece e emudece. Desafio quem sorri com fome. Não aquela do jejum intermitente, ou da última dieta da moda, mas aquela que escancara a diferença. Qual diferença?

Dos que na sua história, seguiram dias, meses, anos, acreditando que sonhar é ter a sobrevivência. Os sonhos são ser enxergados quando estão por aí, em suas vidas, sem que simplesmente permaneçam invisíveis. Quantas vidas são mesmo invisíveis?

De acordo com a filósofa Judith Butler, em sua construção teórica delimita a construção do conceito de "vidas precárias". Neste sentido, em que para além das vidas serem enlutáveis, ou poderem ser passíveis de serem homenageadas por sua ausência, algumas vidas são enquadradas como "não vidas" desde o seu nascimento. Assim, teríamos pesos diferentes, vidas que são reconhecidas e vidas que simplesmente nunca foram inscritas, ou mesmo, acenderam como vida. E quando estas são devassadas, como nesta pandemia, as valas comuns e toda sorte de não identidade, marca que simplesmente nunca existiram.

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Quando o terror abate aos que tem uma inscrição social, ou seja, aqueles que têm acesso a um bom hospital e equipe médica, os sentimentos são diferentes. Ao assistir, aos que sempre foi permitido sonhar, com carreiras de sucesso, viagens internacionais e uma "vida a ser vivida", o peso não é um dado, ou mais um. Naquele momento, todos são flagrados na sua mais condição humana, de que mesmo o acesso não os poupou da dor. Igualados como humanos órfãos de pais ricos, pessoas "com condição" se deparam com sequelas decorrentes da infecção pelo COVID-19, também estão experimentando a vala comum. Nesta vala, o corpo se despe de qualquer joia, de qualquer luxo e se depara com a nudez de existir.

Sem hospital, com plano, com dinheiro e sem vacina. O que antes não tinha solução, ou parecia uma morte não evitável, agora se transforma numa urgência. Quero minha dose, por favor. Consigo tudo que sempre quis. Quero a vacina, preciso voltar a ter paz. Tem uma fila, de critérios, de prioridades. Tem uma fila?

Sempre fui prioridade. Com um jeitinho, bem do meu jeito, me vacino. Furei a fila da ética. Qual a ética da sobrevivência? Não teve já canibalismo quando avião caiu? Tem um avião caindo e preciso de paraquedas. Voltei a sonhar com a vida que sempre tive acesso. Remorso? Somente para os que têm ética, no caso furei esta fila. Na fila dos que optaram, por sua ética se manter na fila, caprichem aí na máscara, no isolamento social e não se esqueçam: apenas quem está vivo pode sentir remorso.

Dentre os vivos com ética, alguns têm remorso. Não de esperarem pela vacina, mas de terem sido os patrocinadores de uma necropolítica. Importante conhecermos este termo. Tão decisivo quanto permitir vidas serem vidas, também, pode se decidir quem morre. Quando no nazismo, judeus foram exterminados em campos de concentração, ali vigorava uma necropolítica, em que o estado decidia os sobreviventes. O judaísmo com sua tradição e força, viabilizou o estado de Israel e olha o exemplo de vacinação e combate à pandemia por COVID-19. Para além de sobreviverem, criaram uma forte cultura associada contra o anti semitismo, com filmes, museus e toda sorte de memória pública relacionado ao nazismo para poderem se defender.

E alguém conhece o genocídio armênio? Alguns poucos. Também, eliminou vidas através de campos de extermínio e toda sorte de opressão. Na história mundial tem-se vários genocídios que nunca foram inscritos como memória. E o que isso tem haver?

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A memória promove história, estas viabilizam o reconhecimento da dor e a elaboração do horror. Aí que precisamos não ficar mascarados. A omissão é uma forma de negligenciar e ser um agente da necropolítica. Não lave suas mãos, não se silencie, não apenas siga a vida "fingindo" que hoje você está nas mãos do "futuro", pois para que se tenha um amanhã, antes se tem o dia de hoje.

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Lutemos por um luto coletivo, em que a vala "Brasil", não seja um criadouro de "cepas novas", ou aos que foi permitindo vacinar, não comparecerem para segunda dose. Também, se solidarize, tenha para além da sua perda e do seu luto próprio, uma forma de ressignificar sua dor. Todos estão assim meio "blasés", meio que atônitos, estranhe os que negam ou não sentem dor. Será preciso se "chocar", se revoltar, gritar e elaborar para que o luto brasileiro não se transforme numa "fuga em massa" do país, por desistir de morar aqui, nem desistir de sonhar por algo melhor por aqui mesmo. Até mesmo porque com o dólar a 5,44 precisa realmente ser uma pessoa de acesso! E aos de acesso "real" que possam não se contentar, com as vagas do Einstein, do Sírio, Samaritano ou Stars. Vacine-se da indiferença.

*Maria Francisca Mauro, mestre em Psiquiatria pelo PROPSAM/UFRJ. Atua como psiquiatra especializada na área de Transtornos Alimentares e Obesidade. Faz parte da Associação Brasileira de Psiquiatria. Pesquisadora colaboradora no PROCIBA/HUCFF/UFRJ (Programa de Obesidade e Cirurgia Bariátrica do Hospital Universitário Fraga Filho) e membro do GOTA/IPUB/UFRJ (Grupo de Obesidade e Transtornos Alimentares)

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