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Luta quilombola contra a necropolítica municipal no Ceará

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Por José Olímpio Ferreira Neto , André Vitorino Alencar Brayner e Manuela Vieira Costa
Atualização:
José Olímpio Ferreira Neto, André Vitorino Alencar Brayner e Manuela Vieira Costa. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Habitation de négres (1), gravura de Johann Moritz Rugendas, um pintor e desenhista alemão que retratou a cultura brasileira, é uma representação dos quilombos, que são historicamente associados a um movimento de resistência coletiva originário dos povos africanos escravizados e trazidos para o Brasil. Inicialmente, eram denominados de mocambos, lugar onde viviam pessoas de várias origens étnicas, dentre elas os escravizados fugidos e seus descendentes, soldados desertores, pessoas perseguidas pela igreja ou pela justiça, aventureiros, vendedores e índios, tendo como população predominante os africanos e seus descendentes. (2)

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A história dos quilombolas não se encerra nesse passado de escravidão, pois os remanescentes de quilombos continuam a existir em suas lutas e trajetórias em busca de liberdade, reconhecimento de suas identidades e de políticas públicas inclusivas que salvaguardem os seus direitos. Apesar da invisibilidade social dessas famílias, elas reivindicam constantemente as suas garantias de moradia e sustento, o fortalecimento da agricultura familiar, além de estarem associadas às políticas antirracistas.

Os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos são protegidos constitucionalmente pelos Direitos Culturais, no artigo 216, §5º, da Constituição Federal do Brasil de 1988 - CF/88. O reconhecimento de uma comunidade quilombola está prevista no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que foi regulamentado pelo Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, o qual indica o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

Todo esse processo compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, conforme o artigo 3º do decreto. Ainda segundo o mesmo diploma legal, compete à Fundação Cultural Palmares - FCP assistir e acompanhar esse processo.

O artigo 2º aponta que são considerados remanescentes das comunidades dos quilombos, os grupos étnico-raciais, conforme critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. Após concluir os trabalhos, o Incra submete o relatório ao rol de órgãos e entidades relacionados no artigo 8º, reconhecendo consequentemente a comunidade e o fluxo de saberes e fazeres ancestrais que permeiam naquele lugar.

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Um jornal (3) de grande circulação no estado do Ceará veiculou notícia, no dia 27 de abril de 2021, de que três municípios (Iracema, Maranguape e Aracati) desrespeitaram o Programa Nacional de Imunização - PNI, no qual os povos quilombolas estão inseridos na 2ª fase da vacinação contra Covid-19. O Governo do Estado do Ceará ratifica, por meio do Plano Estadual Operacional da Vacinação contra Covid-19, a vacinação das Comunidades Quilombolas. A Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará - DPCE, provocada por denúncias, pronunciou-se recomendando aos Municípios o cumprimento do plano de vacinação.

Em alguns casos, em posturas negacionistas, as autoridades municipais se utilizam de argumentos esdrúxulos, que beiram à má-fé, tal como proferir a ideia de que não haveria Comunidade Quilombola na região. Ora, não é da competência dos Municípios promoverem esse processo de reconhecimento e certificação.

Usam ainda de argumentos arraigados ao fenótipo dos indivíduos, desconsiderando que os membros da comunidade são ancestrais de povos que foram violentados por colonizadores e guardam outras ancestralidades impressas em suas características físicas e culturais, resultados da miscigenação colonizatória. Destarte, encetam uma necropolítica, pois em meio a uma pandemia, arvoram-se de poder, para decidir arbitrariamente, contra qualquer decisão constituída, "quem pode viver e quem deve morrer". (4)

Fica evidente, em ações dessa natureza, que os povos subalternizados são inimigos dos detentores do poder. Sem fundamento algum, tentam justificar aquilo que, em verdade, qualifica-se como um genocídio que ameaça a vida biológica e cultural dessas comunidades. Pois, ao excluírem os quilombolas da prioridade no plano de vacinação, colocam em risco os detentores de saberes e fazeres ancestrais. Ademais, atentam ao princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista, que essas comunidades compõem uma população prioritária devido a sua fragilidade social suportada ao longo do processo histórico em demasia, sendo considerados, portanto, vulneráveis.

Neste caso, é latente a grave violação aos direitos culturais e constitui-se como atentado ao patrimônio cultural brasileiro, direito subjetivo público previsto no art. Art. 216, § 5º da CF/88. É a erradicação da memória por meio da morte. A negação da proteção constitucional conferida por meio de política de invisibilidade, negando-lhes o reconhecimento como portadores de referência à identidade brasileira, é o objetivo cujo meio é a obstrução da imunização.

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Diante deste contexto, os remédios constitucionais - como Ação Popular, Mandado de Segurança e Ação Civil Pública - constituem garantias fundamentais, trazidas pela CF/88, com vista à proteção de direitos individuais e transindividuais, frente às arbitrariedades do Estado. O uso destes instrumentos jurídicos pelas comunidades pode retirar, metaforicamente, a máscara de Anastácia (5) e permitir que os indivíduos e/ou grupos, cujos direitos estejam sendo violados, gritem ao mundo que não existe apenas uma história única, mas histórias, memórias e identidades que precisam conviver.

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É fundamental lembrar, pois, que essa luta não é apenas das comunidades vulneráveis, que são as afetadas diretamente, mas de todo o povo brasileiro. É direito de todos os cidadãos, no presente, e seu dever assegurar às futuras gerações os saberes e fazeres ancestrais dos povos que constituem o Brasil.

*José Olímpio Ferreira Neto, advogado. Especialista em Direito Ambiental e em Direito Constitucional. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza (GEPDC/UNIFOR). Secretário executivo do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

*André Vitorino Alencar Brayner, advogado. Mestre em Direito Constitucional. Diretor do IBDCult. Possui atuação científico-jurídica preponderante nos campos relacionados ao Direito Internacional, Direitos Culturais e Terceiro Setor. Consultor jurídico do Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura, do Instituto Cultural Iracema e do Instituto Brasul África

*Manuela Vieira Costa, advogada. Pós-graduanda em Fashion Law na FASM. Pós-graduanda em Direito Digital e das Startups na UNIFOR

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(1) RUGENDAS, Johann Moritz. Habitation de négres. 1827 - 1835. Disponível em: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/19497/habitation-de-negres Acesso em: 11 maio 2021.

(2) REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo, p. 14-39, dez/fev, 95/96.

(3) SOUSA, Alice. Quilombolas: Defensoria atua em três cidades do Ceará por descumprimento ao PNI. OPOVO on line. 27 de abril de 2021. Disponível em: . Acesso em: 04 maio 2021.

(4) MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2020

(5) KILOMBA, Grada. Memórias de Plantação: episódios de racismo cotidiano. Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora de Livros Cobogó, 2019.

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