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Litigância climática e a responsabilidade civil das empresas

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Por Letícia Yumi Marques
Atualização:
Letícia Yumi Marques. FOTO: DIVULGAÇÃO  

O recente julgamento da ADPF 708 no STF, em que o tribunal proibiu o contingenciamento do Fundo Clima e determinou que o governo federal adote medidas para a sua implementação, é um marco importante para a jurisprudência climática no Brasil, em especial no que diz respeito ao papel do Estado nos esforços globais para combate às mudanças climáticas. Em geral, nas demandas dessa natureza propostas contra o Estado, comunidades impactadas, organizações da sociedade civil e partidos políticos da oposição têm requerido a adoção de medidas concretas para implementação de políticas públicas climáticas e cumprimento das metas de redução de gases de efeito estufa assumidas no Acordo de Paris.

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No entanto, além dessas ações que envolvem diretamente o Estado, estão em curso diversos outros processos judiciais em que empresas são demandadas a incorporar impactos climáticos de suas atividades nos estudos técnicos que subsidiam o licenciamento ambiental e até a indenizá-los. Em alguns casos, pede-se também a suspensão de licenças ambientais, benefícios fiscais e de acesso a linhas de crédito oficiais. Em geral, as ações contra as empresas têm sido propostas por organizações da sociedade civil, promotorias de meio ambiente e órgãos ambientais.

Como não há lei que determine de forma objetiva que obrigações as empresas devem cumprir com relação às mudanças climáticas, o fundamento dessas ações gira em torno das políticas ambientais já existentes, como a de meio ambiente, de mudanças climáticas, de resíduos sólidos, dos princípios do poluidor-pagador e do desenvolvimento sustentável, além da Lei de Crimes e Infrações Ambientais, que subsidia pedidos contra diretores de empresas. A ausência de legislação específica e de obrigações bem definidas eleva o grau de insegurança jurídica para as empresas, mas o maior ponto de atenção é a flexibilização da configuração do nexo de causalidade entre a atividade empresarial e o dano climático.

O nexo de causalidade é o liame que estabelece a relação de causa e efeito entre a conduta do demandado e o dano a ser indenizado. No âmbito da legislação ambiental brasileira, a configuração do nexo de causalidade é uma das únicas garantias que as empresas têm, considerando que, nessa matéria, a responsabilização civil é objetiva, solidária e, segundo decisão recente do STF, não prescreve. Apesar disso, o que se tem visto nessas ações é um nexo de causalidade abrangente e alargado, com base no qual empresas têm sido demandadas a pagar indenizações milionárias porque suas atividades geram gases de efeito estufa que contribuem para as mudanças climáticas, ainda que estejam devidamente licenciadas (em alguns casos, se questiona também o próprio licenciamento, se não tiver incorporado a vertente climática).

Nessas ações, a configuração do dever de indenizar se sustenta na comprovação científica das mudanças climáticas em si, sem a necessidade de comprovar exatamente qual o dano que teria decorrido especificamente de uma determinada atividade empresarial. De fato, a valorização de dados científicos no processo de convencimento dos magistrados tem se consolidado na jurisprudência ambiental nos últimos 20 anos, inclusive nos tribunais superiores que, com frequência, realizam audiências públicas para ouvir a comunidade científica em certos temas.

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Mudanças climáticas são uma questão global, de forma que a caracterização do nexo de causalidade nos moldes do direito civil convencional ou até mesmo da responsabilidade civil ambiental não é suficiente para tutelá-la. Não por acaso, alguns autores defendem a existência de um "direito climático" com características próprias e com alicerce nesse racional de um nexo de causalidade mais flexível (se comparado com a lógica da responsabilidade civil convencional).

É possível antecipar que, num futuro próximo, haja aumento do número de ações judiciais relacionada às questões do clima e dos impactos negativos do aquecimento global. Se a jurisprudência seguir pelo caminho que as ações em curso têm prenunciado, com nexo de causalidade mais flexível ou arrojado para configuração do dever de indenizar danos climáticos, é importante que as empresas estabeleçam desde já, ainda que não haja lei específica, metas de descarbonização da sua atividade, que podem ser consideradas no âmbito dos seus programas de ESG e governança corporativa.

Ainda existe muita insegurança jurídica sobre o tema, já que não é possível, neste momento, entender o alcance dessa responsabilização, nem há obrigações objetivas especificadas em lei, de forma que ações voluntárias de prevenção do litígio climático podem ser a melhor alternativa para minimizar riscos à atividade empresarial.

*Letícia Yumi Marques, head da área Ambiental do KLA Advogados

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