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Limites de punição do abuso de poder religioso

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Por Flávio Henrique Costa Pereira
Atualização:
Flávio Henrique Costa Pereira. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O Tribunal Superior Eleitoral, na sessão do dia 25 de junho de 2020, iniciou julgamento de um importante tema para o processo eleitoral brasileiro. Trata-se do reconhecimento de nova modalidade de abuso de poder, o chamado "abuso de poder religioso". O tema, por si, é cercado de grande polêmica e, certamente, será objeto de muito debate.

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O relator, ministro Edson Fachin, em seu voto, destacou a necessidade de a Justiça Eleitoral garantir a igualdade de chances entre os candidatos em disputa e a liberdade do voto dos eleitores. Ainda, fundamentou o ministro:

"A imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade.  Dita interpretação finca pé na necessidade de impedir que qualquer força política possa coagir moral ou espiritualmente os cidadãos, em ordem a garantir a plena liberdade de consciência dos protagonistas do pleito." Como se percebe, o liame do raciocínio defendido pelo ministro Edson Fachin é o abuso de autoridade.

Após pedido de vista adiantado do ministro Tarcísio Vieira, o ministro Alexandre de Moraes antecipou seu voto, acompanhando o relator, em razão da pouca relevância do fato, que constituía em uma reunião com cerca de apenas quarenta pessoas no interior da igreja. Todavia, fez importante destaque ao dizer que é preciso pensar no tema com muito cuidado, pois a compreensão exposta pelo relator permitiria à Justiça Eleitoral, em tese, ampliar sua atuação para questionar o envolvimento de outras entidades no processo eleitoral, destacando, como exemplo, os sindicatos. Também salienta a necessidade de bem analisar a liberdade religiosa, pois, ao tolhê-la, acaba-se por cercear a própria liberdade de expressão.

O assunto não é novo na Justiça Eleitoral. Em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral confirmou a cassação do mandato do então deputado federal Franklin Lima, do Estado de Minas Gerais, por sua participação em um evento de grande porte da Igreja do Poder Mundial de Deus, do pastor Valdemiro Santiago, à véspera da eleição. Porém, naquela oportunidade, foi reconhecido como configurado o abuso de poder econômico, diante da dimensão do evento, ficando a discussão sobre o abuso do poder religioso apenas a título de obter dictum. 

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Entendo que o reconhecimento do abuso de poder religioso como instituto próprio é inconstitucional. A Constituição Federal, em seu art. 14, § 9º, expressamente determina que os casos de inelegibilidades deverão ser previstos em lei complementar, contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Assim, é certo que os abusos constitucionalmente aptos a serem reconhecidos como de influência no processo eleitoral são os de índole econômica, tanto para o particular como para o público, e aqueles caracterizados como abuso de autoridade. Esta, a autoridade, pela letra da Constituição da República, só pode ser estendida para cargos ou empregos na administração pública.

A partir da própria dicção de nossa Carta Federativa, portanto, não se faz necessário grande esforço para se perceber que não há espaço para a amplitude defendida pelo ministro Edson Fachin. Com a devida vênia, extrapola-se a própria esfera de atuação da Justiça Eleitoral.

Após atenta leitura do voto do ministro Edson Fachin percebe-se o cuidado de fazer prevalecer a liberdade de escolha do cidadão que, na visão do relator, se encontra cerceada pelo envolvimento emocional a partir de atos da autoridade eclesiástica.

Entendo que essa concepção não merece guarida, pois sua prevalência tem como pano de fundo a necessidade de tutelar o eleitor, a partir da convicção de que não está apto a discernir sua opção eleitoral enquanto cidadão, por cooptação de sua vontade e pensamento.

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As ideologias próprias de cada cidadão, na esteira de sua formação, crenças e convicções, não é elemento sindicável pelo Estado. À Justiça Eleitoral compete rechaçar os abusos, mas não os elementos de decisão do eleitor. Membros de comunidades religiosas, sejam elas maiorias ou minorias, mas principalmente essas, têm o direito de manifestar seus votos, convictos de que suas escolhas representam uma esperança de um País melhor, seja por qual motivo for, estejam corretas, ou não.

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É assim que se constrói uma democracia, cuja expressão maior, longe da igualdade e da moralidade, é a liberdade. República é o instituto de manifestação de igualdade e da moralidade. Aqui, falamos de democracia. E vale lembrar que democracia tem como pressuposto primeiro a liberdade, que não se perfaz com a tutela do Estado.

Mas a inconstitucionalidade da interpretação também se revela a partir da constatação primeira do texto constitucional supratranscrito no sentido de que é a lei complementar que pode ampliar a incidência das causas de inelegibilidade por abuso de poder econômico ou de autoridade. O constituinte originário não permite ao Poder Judiciário criar novas hipóteses de inelegibilidades.

Certo é, porém, que a Justiça Eleitoral não está impedida de agir quando se constatar efetivo abuso de poder, nos moldes como definido na Constituição Federal. Sempre que a atuação de entidades religiosas abusarem do poder econômico, ou mesmo de veículos de comunicação social próprio, como consta do art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 1990, caracterizada estará a hipótese jurídica de repreensão. Aliás, foi o que ocorreu no citado exemplo de 2018.

No Brasil de hoje, a aplicação do princípio da autocontenção, que exige dos Poderes constituídos o frear para as ações que exorbitam suas competências, nunca se fez tão necessária. Este é o caso em discussão. Avançar para além dos abusos previstos na Constituição Federal é legislar, o que requer a manifestação do Poder Legislativo.

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*Flávio Henrique Costa Pereira, especialista em direito eleitoral, sócio-coordenador de Departamento de Direito Político Eleitoral do BNZ Advogados

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