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Limitações temáticas das bolsas científicas ferem a Constituição e as leis

Por Nina Ranieri
Atualização:
Nina Ranieri. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em 23 de abril, o Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) anunciou Chamada Pública para 25.000 bolsas de iniciação científica (IC) para alunos de graduação, período de 2020/2021. A iniciativa se inclui no Programa Institucional de Iniciação Científica (PIBIC), que repassa cotas de bolsas a universidades credenciadas, para administração e distribuição mediante avaliação de projetos em todas as áreas do conhecimento. O PIBIC foi criado em 1988; as universidades estaduais paulistas aderiram ao programa em 1992.

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Nesta edição, porém, as bolsas serão concedidas apenas para projetos que apresentarem aderência a, no mínimo, uma das cinco áreas de tecnologia prioritárias para o período 2020/2023, estabelecidas na Portaria 1.122, do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTC), que excluem as ciências básicas e aplicadas.  São elas: estratégicas, compreendendo os setores espacial, nuclear, cibernética, segurança pública e fronteira; Habilitadoras - inteligência artificial, internet das coisas, materiais avançados, biotecnologia e nanotecnologia; de Produção - indústria, agronegócio, comunicações, infraestrutura, serviços; Desenvolvimento Sustentável - energias renováveis, bioeconomia, tratamento e reciclagem de resíduos sólidos, tratamento de poluição, desastres ambientais e preservação ambiental; e Qualidade de Vida - saúde, saneamento básico, segurança hídrica, tecnologias assistivas.

É a primeira vez na história do PIBIC que limitações temáticas são impostas à concessão das bolsas, o que contraria os objetivos do programa, centrados no despertar de vocações científicas e no incentivo a novos talentos entre estudantes de graduação. O projeto visa contribuir para a formação científica de recursos humanos que se dedicarão a qualquer atividade profissional e a estimular pesquisadores produtivos a envolverem alunos de graduação nas atividades científica, tecnológica e artístico-cultural.

O CNPQ foi criado em 1951, pela Lei 1.310, com a finalidade de "promover e estimular o desenvolvimento da investigação científica e tecnológica em qualquer área do conhecimento (art. 1º). Dotado de autonomia técnico-científica, administrativa e financeira, está vinculado ao MCTC desde 1985 (originalmente, vinculava-se à Presidência da República). Entre suas competências, inclui-se a cooperação com universidades e institutos de ensino superior no desenvolvimento da pesquisa científica e na formação de pesquisadores. Por essa razão, as bolsas de IC vêm sendo concedidas desde a sua criação, ampliando-se o volume de recursos a partir do estabelecimento do modelo universitário da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão pela Lei 5.540/68 (art. 2º), posteriormente incorporado, como princípio, ao art. 207 da Constituição Federal e reproduzido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996.

Como se pode notar, foi justamente durante o regime militar, com a reforma universitária estabelecida pela Lei 5.540, que se elegeu como prioridade a formação do pesquisador e docente, acompanhada de financiamento público para a ciência e a tecnologia e do fortalecimento da pós-graduação (nível de ensino reconhecido pelo Conselho Federal de Educação em 1965). O PIBIC sempre foi parte desse processo, como se depreende dos objetivos específicos do programa: possibilitar uma maior articulação entre a graduação e a pós-graduação e contribui para reduzir o tempo médio de titulação de mestres e doutores. Pesquisa universitária, portanto, é feita para o ensino e para a extensão de serviços à comunidade.

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Temos aí um grave problema jurídico: a exclusão das ciências básicas e aplicadas do PIBIC contraria a Constituição, a lei de criação do CNPQ e a LDB, porque provoca ruptura no complexo processo de formação de pesquisadores e grupos de pesquisa nas ciências básicas e aplicadas, com graves consequências para o desenvolvimento da ciência e do atendimento do princípio da indissociabilidade do ensino e da pesquisa. Como alertam os pró-reitores de pesquisa das três universidades estaduais paulistas, a atual Chamada Pública transforma o que é "prioritário" em "exclusivo". A propósito, a Chamada desconsidera que a pesquisa científica básica deve receber tratamento prioritário do Estado, nos exatos termos do art. 218 da Constituição. Por outro lado, as tentativas de desconstrução de pesquisas e grupos de pesquisa na área de Humanidades não são novas nem inovadoras. Em março, a CAPES alterou as regras para a concessão de bolsas, alinhada à visão governamental de fomento a áreas com retorno imediato, o que ora se repete no CNPQ.

Evidentemente a pesquisa em Direito tem muito a colaborar com as áreas prioritárias do MCTC. Para ficar no óbvio, o direto constitucional, administrativo, econômico, tributária, civil e penal são campos em que ICs podem ser desenvolvidas nos termos da atual Chamada. O que não se admite e não se aceita é a exclusividade de áreas para a concessão das bolsas. É nas Humanidades que se constrói o pensamento filosófico e político que propiciou o Estado de Direito, a separação de poderes, os direitos humanos, o regime democrático, conquistas civilizatórias nas quais o Direito tem papel fundamental. Encerro com outra lembrança, de um cartoon do saudoso Quino, no qual, numa entrevista de emprego, o patrão indaga ao candidato: "O senhor tem ideias próprias?". "Não", responde o encolhido pretendente, "só de aluguel". Ao que o primeiro retruca: "Ainda bem, porque aqui não queremos novidades".

*Nina Ranieri, presidente da Comissão de Pesquisa da Faculdade de Direito da USP

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