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Lei de lavagem de dinheiro: afrouxamento ou aprimoramento?

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Por Fernanda de Almeida Carneiro
Atualização:
Fernanda de Almeida Carneiro. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Preocupados com a expansão do tráfico ilícito de entorpecentes e o impacto nefasto do crime nas bases econômicas e políticas da sociedade, em 1988, Estados-membros da Organização das Nações Unidas concluíram a chamada Convenção de Viena.

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O documento foi um marco no combate à lavagem de dinheiro por exigir dos países que tipificassem penalmente a incorporação de dinheiro espúrio, oriundo do comércio de drogas, na economia formal.

Embora a convenção tenha sido promulgada pelo Brasil em 1991, o crime passou a ser efetivamente tutelado apenas em 1998, com a edição da Lei nº 9.613, que punia a ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores obtidos por meio da comercialização de drogas e de outros crimes expressamente elencados - terrorismo, extorsão mediante sequestro e tráfico de armas, dentre outros.

O decurso do tempo evidenciou a existência de brechas de punibilidade na legislação e a necessidade de aprimoramento do texto legal. O emprego do dinheiro oriundo do popular "jogo do bicho" em atividades comerciais, por exemplo - clássica forma de lavagem de dinheiro -, estava fora do alcance da lei. A exploração de jogos de azar não fazia parte do rol taxativo previsto na Lei nº 9.613, e tampouco era crime, mas contravenção penal.

Buscando suprir lacunas e tornar mais eficiente o enfrentamento à lavagem de capitais, em 2012 foi promulgada a Lei nº 12.683, que trouxe significativas alterações. A principal certamente foi a abolição do rol de delitos antecedentes, criminalizando, de forma abrangente, a conduta daquele que mascara a origem de valores oriundos de qualquer infração penal.

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Passados oito anos surgiu, inevitavelmente, necessidade de atualização legislativa. Tanto para coibir novas formas de lavagem de dinheiro, que ocorrem por meio da utilização de criptomoedas, operações com trusts e sucessivas transações internacionais; mas, principalmente, para definir, de forma precisa, os contornos do crime.

Isso porque questões omissas na legislação passaram a ser fonte de análises doutrinárias e decisões judiciais conflitantes, trazendo inegável insegurança jurídica.

Vamos a alguns exemplos.

Estudiosos do direito divergem acerca da natureza jurídica do crime de lavagem de dinheiro, em especial na modalidade "ocultar": se permanente ou instantâneo de efeitos permanentes. Ao contrário do que possa parecer, não se trata de mera discussão teórica e os efeitos práticos da definição são drásticos: a permanência significa admitir a prisão em flagrante e impacta na contagem do prazo prescricional, que não se inicia enquanto o bem estiver oculto.

O Supremo Tribunal Federal já se baseou na suposta natureza permanente do crime para condenar agentes por lavagem de dinheiro mesmo que o bem tenha sido mascarado quase vinte anos antes. Imaginemos, então, a seguinte situação: na época da hiperinflação, uma pessoa deixa de recolher tributos e remete os valores, de origem legítima, ao exterior. Ainda que não tenha havido qualquer movimentação posterior do dinheiro - agora ilícito, pois produto de sonegação -, a lavagem de dinheiro se perpetuaria no tempo. Seria razoável que o autor fosse preso, hoje, em razão de tais fatos?

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Outra questão que gera discussão concerne ao chamado "caixa dois". Não havendo tipo penal específico relacionado à prática, o crime costuma ser enquadrado como falsidade ideológica pela Justiça Eleitoral, com pena cominada de 1 a 5 anos de reclusão. Recentemente, porém, políticos que recebem recursos não contabilizados para suas campanhas passaram a ser condenados por lavagem de dinheiro - delito, vale lembrar, punido com até 10 anos de prisão. Qual é o entendimento mais adequado?

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Buscando melhorar o diploma legal que começa a ficar defasado, no início de setembro deste ano, o Deputado Rodrigo Maia instituiu Comissão de Juristas para propor mudanças na Lei de Lavagem de Dinheiro. O grupo, composto por ministros do Superior Tribunal de Justiça, desembargadores, membros do Ministério Público, advogados e especialistas, terá 90 dias para apresentar um Anteprojeto, que será posteriormente debatido na Câmara.

No despacho que nomeou a Comissão, Maia asseverou que "decisões judiciais têm promovido um alargamento do tipo objetivo do crime de lavagem (...) promovendo condenações em casos que extrapolam a previsão legislativa". Foi o bastante para que pipocassem, na mídia, notícias alardeando a tentativa de "abrandamento" da lei em vigor.

Em que pese eventual desconfiança sobre as reais intenções que motivaram o Presidente da Câmara dos Deputados, o aprimoramento legislativo deve ser constante, ainda mais considerando a crescente complexidade das operações de lavagem de dinheiro.

A definição, de forma clara e precisa, dos contornos do crime, não é sinônimo de afrouxamento. Pelo contrário. Evita que condenações, levadas às últimas instâncias do judiciário, sejam futuramente anuladas em razão de incorretos enquadramentos, o que contribui para o descrédito da população em nossas instituições e aumento da sensação de impunidade.

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Ainda que o Anteprojeto a ser apresentado não traga soluções definitivas, a constituição de Comissão altamente abalizada, formada por juristas de renome, certamente buscará, sem qualquer viés político, aprimorar os mecanismos de prevenção e repreensão a um crime que movimenta, atualmente, 3,5% de todo o PIB nacional.

Está mais do que na hora de debater o assunto.

*Fernanda de Almeida Carneiro, advogada criminal, sócia do Castelo Branco Advogados Associados

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