Ao se examinar mais detidamente a chamada Lei da Repatriação, observa-se de plano uma enorme incoerência legal na Lei de Repatriação quanto aos recursos passíveis de regularização. No art. 1º a Lei 13.254/2016 estabelece que somente recursos de "origem lícita" são passíveis de regularização. No entanto, o inciso II do art. 2º da norma define que são lícitos o produto ou o proveito dos crimes previstos no § 1o do art. 5º da Lei. Essa conceituação pode, inadvertidamente, ter produzido um efeito de descriminalizador em relação aos delitos que relaciona.
Percebe-se, também, diferentemente do que anunciou oficialmente o Poder Executivo, que essa lei temporária, com vigência de 4/4/2016 a 31/10/2016, permite que sejam regularizados recursos ilegais oriundos dos mais variados crimes e, inclusive, os destinados ao financiamento do terrorismo.
O art. 6º da Lei 13.260/2016, que disciplina o crime de terrorismo e o conceito de organização terrorista no país, prevê pena de 15 a 30 anos de reclusão para quem oferecer, obter, guardar, manter em depósito, solicitar, investir, de qualquer modo, direta ou indiretamente, recursos, ativos, bens, direitos, valores ou serviços de qualquer natureza, para o planejamento, a preparação ou a execução de atos terroristas. Já o art. 1º da Lei 13.245/2016 estabelece que os recursos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados poderão ser regularizados. A ausência de exceção na Lei quanto ao destino original dos recursos admite que seja regularizado o dinheiro destinado ao financiamento de atividades terroristas, obtido antes de 18/3/2016, data da publicação da Lei 13.260/2016, por meio de atividades permitidas ou não proibidas.
Isso é uma porta aberta para que recursos oriundos de fontes lícitas, arrecadados no Brasil, antes da publicação da lei antiterror, e nos países onde não existe lei criminalizando o financiamento do terrorismo, sejam regularizados pela Lei de Repatriação e remetidos legalmente ao exterior ou utilizados internamente.
Imaginemos duas hipóteses de origem lícita de recursos para o financiamento do terrorismo. A primeira, um simpatizante de uma organização terrorista, que deseja atuar como um "lobo solitário", recebe deste grupo, antes da Lei 13.260/2016, dinheiro para financiar a sua ação, oriundo de doações espontâneas. Outra possibilidade é uma pessoa jurídica, operando licitamente no mercado brasileiro, que mantenha recursos em "caixa dois", destinados a financiar a causa de uma organização terrorista, arrecadados antes da Lei 13.260/2016. Em ambos os casos os ativos são lícitos devido à ausência de tipificação penal e nada impede, em tese, que esses agentes adiram à Lei de Repatriação para legalizar os recursos.
Como a Lei de Repatriação não se preocupa com a destinação original dos recursos e, uma vez que o dinheiro foi obtido mediante operações lícitas, criou-se um conflito entre a norma e o princípio constitucional de repúdio ao terrorismo (art. 4º, VIII, e art. 5º, XLIII), isso sem falar na ofensa aos inúmeros acordos internacionais firmados pelo Brasil para combater o financiamento ao terrorismo.
Em razão dessa permissividade, entende-se que a Lei de Repatriação é inconstitucional pela ausência de razoabilidade e proporcionalidade oriundos dos erros graves contidos na norma. O Legislador excedeu seu poder de legislar e violou princípios constitucionais fundamentais, entre eles o do devido processo legal, ao não observar que abriu a possibilidade de regularizar recursos destinados ao financiamento do terrorismo.
O Supremo Tribunal Federal e a doutrina já assentaram que, se a norma for desproporcional ou irrazoável, há excesso e/ou arbítrio do poder de legislar que ofende o princípio do substantive due process of law. Conforme o STF, o respeito ao princípio da proporcionalidade é essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela, mesma das liberdades fundamentais.
O Poder Executivo deveria reconhecer que se equivocou, revogar a regulamentação da Lei de Repatriação que vai, a partir de 4/4/2016, abrir o prazo para a regularização e propor uma nova legislação escoimada dos problemas apontados.
*Alexis Souza. Economista e advogado. Especialista em Direito da Regulação e Direito Penal Econômico