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Lei Anticrime: o Direito Penal na mesa de negociações

Por João Augusto Gameiro
Atualização:
João Augusto Gameiro. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No final de 2019, foi publicada a Lei Federal nº 13.964 - popularmente conhecida como Lei Anticrime - apresentada pelo Poder Executivo sob o slogan "A lei tem que estar acima da impunidade". Essa norma trouxe, de fato, profundas mudanças para o sistema penal brasileiro modificando partes do Código Penal, do Código Processual Penal, da Lei de Execuções Penais e de outras mais quatorzes leis da área.

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Ocorre que o apelo social por normas penais mais severas e a polarização dos debates sobre a necessidade de criação de um Juiz de Garantias - que segue pendente de uma decisão definitiva no Supremo Tribunal Federal - acabaram por minimizar o impacto de diversas inovações trazidas pela Lei Anticrime que aproximam o Direito Penal no Brasil a um modelo muito mais negocial, aumentando significativamente as hipóteses em que acusação e defesa podem realizar acordos.

Dentre elas, estão as novas regras que regulamentam de forma mais específica como devem ser realizadas as colaborações premiadas, a possibilidade de o informante que auxilia na apuração de ilícitos (whistleblower) receber recompensa de até 5% do valor recuperado com base nas informações apresentadas às autoridades, como também a permissão para que o Ministério Público realize acordo de não persecução penal com investigados em determinadas hipóteses e a autorização para que sejam celebrados acordos de não persecução civil em casos de improbidade administrativa.

Como regra geral, a legislação brasileira impunha o dever ao Ministério Público de oferecer uma acusação - tecnicamente denominada como denúncia - contra determinada pessoa, caso houvesse indícios de que ela estaria envolvida na prática de uma atividade criminosa, cabendo ao juiz analisar as provas produzidas ao longo do processo e decidir pela condenação ou absolvição. No entanto, o que se percebe é a influência de institutos do sistema penal norte-americano no Brasil, criando-se cada vez mais hipóteses em que o Ministério Público pode negociar uma aplicação antecipada de pena mediante a concessão de certos benefícios ao indivíduo investigado.

Embora essa discussão não seja novidade, diversas inovações na legislação brasileira ao longo das últimas décadas apontam para uma paulatina ''americanização'' de nosso Direito Penal, sendo exemplos os já consagrados institutos da transação penal nos Juizados Especiais Criminais e os acordos de leniência no CADE. Entretanto, essa transição nunca foi percebida de forma tão intensa quanto agora, seja pelo ritmo da publicação de novas leis ou pela aplicação cada vez mais difundida desses instrumentos de negociação por diversas autoridades.

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Há muitos argumentos em favor da possibilidade de se permitir a adoção de métodos negociais entre acusação e defesa. Em tese, eles tornam possível a resolução mais célere de casos que se estenderiam por anos em um tribunal, economizam recursos públicos, desafogam o sistema carcerário e permitem a obtenção de provas por meio da cooperação de delatores com potencial para desestruturar grandes e complexas organizações criminosas.

A discussão aqui, envolve uma decisão sobre qual modelo de persecução penal se deseja adotar, visto que o novo modelo pode trazer vantagens, assim como expor o cidadão e empresas a novos riscos.

Muitos acadêmicos e profissionais nos Estados Unidos da América se opõem a instrumentos como a delação premiada. De acordo com o Bureau of Justice Statistics, do Departamento de Justiça do país, 95% dos casos criminais - tanto nas esferas estaduais quanto federal - são atualmente resolvidos em uma fase pré-processual em acordos entre acusação e defesa. Apenas uma minoria de casos chega efetivamente à apreciação de um juiz para que haja uma devida análise de provas e o proferimento de decisão imparcial sobre a responsabilidade ou não do acusado pela prática de uma conduta definida em lei como crime. Importante apontar que esse mesmo sistema penal é o responsável por gerar a maior população carcerária no mundo, seja em números absolutos ou relativos.

Da mesma forma, a avaliação sobre a adoção de novos modelos de repressão ao crime no Brasil também deve levar em consideração que a vasta maioria dos casos penais levados a juízo em no país são muito diferentes dos julgamentos com repercussão na mídia. A realidade brasileira - conforme números divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional, é materializada em uma população carcerária de mais de 700.000 presos, sendo 75% deles envolvidos em crimes de roubo, furto e tráfico de drogas, 70% de analfabetos ou com ensino fundamental completo ou incompleto, 32% ainda aguardando julgamento definitivo, 64% de negros e pardos e uma superlotação na taxa de 170%.

A existência de organizações criminosas extremamente ordenadas e com ramificações internacionais, o alvoroço para que haja uma repressão severa aos atos de corrupção e a percepção da gravidade dos crimes praticados no âmbito empresarial certamente tornam necessária uma evolução e adaptação do Direito Penal para que continue protegendo de forma efetiva os valores mais fundamentais da sociedade. No entanto, nenhuma inovação legislativa pode ser tomada como uma solução perfeita, sendo que devemos todos permanecer vigilantes sobre como novos meios de atuação do Estado na persecução penal podem atingir as liberdades individuais.

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*João Augusto Gameiro, sócio da área penal empresarial de Trench Rossi Watanabe

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