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Lei Aldir Blanc no federalismo brasileiro: riscos e contradições

Por Cecilia Rabêlo
Atualização:
Cecilia Rabêlo. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Segundo o ditado: "quando a cabeça não pensa, o corpo padece". Essa máxima de sabedoria popular poderia ser aplicada ao atual cenário brasileiro, não fosse um preceito fundamental da Constituição de 1988: somos um Estado federal. E o que isso significa mesmo?

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No caso do Brasil significa que os entes que compõem nossa Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) são autônomos entre si, ou seja, não existe hierarquia entre eles, mas apenas uma distribuição de atribuições feita pela Constituição Federal, onde cada um exerce um papel ali determinado.

É por isso que algumas tarefas são atribuídas à União, outras aos Estados e outras aos Municípios. Por uma questão de organização, geralmente cabe à União o papel de "coordenação" geral, enquanto Estados, Municípios e DF exercem competências voltadas à realidade local.

E é exatamente por causa desse preceito constitucional - e fundamental - que Estados e Municípios estão impondo a sua autonomia na luta contra a pandemia do Covid-19, frente à instabilidade do governo federal diante do cenário caótico da Saúde.

Essa competência vem sendo, como somente poderia ser, reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, que em diversas oportunidades teve que reiterar o óbvio: os entes federados são autônomos entre si, podendo tomar decisões sem "pedir autorização" aos outros, desde que estejam de acordo com as atribuições determinadas pela Constituição da República.

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E no campo da política cultural isso também está acontecendo. Por exemplo, o Estado do Ceará (1) impetrou uma ação judicial contra a União, requerendo a prorrogação do prazo para apresentar o Relatório Final de Gestão da Lei Aldir Blanc - LAB, documento exigido para prestar contas de como os recursos federais foram aplicados. O prazo dado pelo governo federal vai até 30 de junho, embora ele mesmo tenha autorizado que o efetivo repasse para o setor cultural seja desembolsado até o final do ano.

Ou seja, se a conta pode ser paga até dezembro, por que exigir a prestação de contas muito antes disso? Parece contraditório, não?

A manutenção do prazo de apresentação do relatório final de gestão afeta não só o Estado do Ceará, mas todos os demais Estados, DF e Municípios do país, que ficam inviabilizados de prestar as contas devidas à União, vez que milhares de projetos ainda estão sendo pagos e executados (conforme permitido pela própria União), existindo ainda aqueles que sequer iniciaram, pois se encontram em localidades em lockdown.

Quando o repasse do recurso foi realizado, no segundo semestre de 2020, a perspectiva sobre a pandemia era de melhora, com permissão de funcionamento de teatros, cinemas e demais equipamentos culturais (ainda que com restrições, observadas as normas de segurança sanitária), ou seja, havia a possibilidade de realização de diversos projetos culturais apoiados.

Porém, já no início de 2021, o cenário mudou e diversas atividades artísticas e culturais foram impedidas de funcionar, bem como várias localidades entraram em regime de isolamento social rígido, como é o caso do Ceará, que vive o pior momento da pandemia até agora.

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O resultado dessa grande confusão é o seguinte: artistas que não podem realizar seus projetos financiados com recursos da LAB por causa do enrijecimento das medidas de combate à pandemia do Covid-19; Estados e Municípios que terão que reprovar a prestação de contas desses projetos, já que não foram executados, pois sequer podem prorrogar o prazo de execução deles por também terem um prazo a cumprir com a União; o de envio do bendito Relatório de Gestão até 30/06/21.

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Ou seja, o recurso destinado para apoiar, de forma emergencial, o setor artístico e cultural nesse momento de pandemia acabará por causar o efeito contrário; prejudicará o próprio setor cultural, que terá prestações de contas de milhares de projetos reprovadas, pessoas caindo em situação de inadimplência perante o Poder Público e, provavelmente, uma enxurrada de ações administrativas e judiciais para cobrança dos recursos (e imposição de sanções), além de outras contestações possíveis. Enfim, um caos!

A contradição do Governo federal ao prorrogar o prazo de pagamento e não fazer o mesmo com o prazo para apresentação do Relatório de Gestão prejudica a já árdua tarefa de implementar - com eficiência - os recursos da Lei Aldir Blanc, tarefa esta atribuída aos Estados, DF e Municípios pela própria LAB, cabendo à União gerenciar esse repasse aos entes e, minimamente, orientá-los na aplicação da norma. No entanto, a demora nas decisões, a falta de informações claras e a ausência de diálogo com o setor cultural demonstram uma instabilidade do Governo federal para enfrentar também essa crise.

Em uma Federação, é fundamental que cada um dos entes cumpra suas atribuições para um bom funcionamento do todo. Como em uma orquestra, a harmonia entre os instrumentistas é crucial para uma boa apresentação. No âmbito da política de cultura, o dever de fomento ao setor não pode ser prejudicado pela falta de harmonia entre os entes do Poder Público, o que acaba onerando, como sempre, a parte mais frágil dessa história: quem vive e trabalha com cultura.

*Cecilia Rabêlo, presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, (IBDCult), advogada, sócia do Saraiva & Rabêlo Advocacia, especializado em Economia Criativa, mestra em Direito Constitucional pela UNIFOR e especialista em Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona/ES

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(1) Processo nº 00492386420211000000

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