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Legitimidade e constitucionalidade das normas que desencorajam os sommeliers de vacina

A tentativa de escolher certa marca de vacina é antijurídica e atenta contra o propósito da vacinação, que é técnica de saúde coletiva e não prestação de serviço público

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Por Silvio Guidi
Atualização:

Silvio Guidi. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A pandemia tem revelado a dualidade humana de uma forma extremamente explícita. É bem verdade que a maioria da população consegue ter consciência de que a vida em sociedade exige de todos certo nível de sacrifício individual, voltado a atingir objetivos coletivos. Mas, há parcela significativa e bastante barulhenta da sociedade que traça seu comportamento como o menino dono da bola, ignorando maliciosamente os impactos desse comportamento. É o traço mais perverso a revelar a desimportância do impacto dessa postura aos demais indivíduos.

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As aglomerações banais (festas clandestinas) e a implicância inexplicável com as máscaras eram os reflexos mais comuns dessa postura individualista, propositadamente cega ao risco da disseminação da doença em progressão geométrica. Agora, no momento em que o país engrena na vacinação, esse viés egocêntrico se concentra no suposto e inexistente direito de escolha da marca da vacina a ser tomada.

Evidentemente, não estou a falar daquelas pessoas que, por condições clínicas atestadas por profissionais médicos, não devem receber certo tipo de vacina, sob pena de ineficiência da imunização ou alto risco de sérios efeitos adversos. Refiro-me exclusivamente àqueles que tomam essa decisão enlameados em desinformações e/ou por crenças irracionais: ideológicas, político-partidárias, xenofóbicas, etc.

As autoridades brasileiras que estão levando a sério o combate à pandemia decidiram agir contra essa nova demonstração da faceta nociva do individualismo. Os denominados sommeliers da vacina, que se negarem a receber certa marca oferecida quando da chegada da sua vez, simplesmente não serão vacinados. Serão enviados para o final da fila de vacinação, após a aplicação das doses em toda a população adulta.

A medida é salomônica e pedagógica. Tenta dar um recado de sensatez voltado a despoluir a mente dessas pessoas, chamando-as para a razão e tentando provocar seu senso de coletividade. A análise jurídica, de serem legais ou ilegais normas desse perfil, deveria ser desnecessária. Medidas educacionais como essa, em prol da vida, haveriam de ser simplesmente aclamadas. São, antes de legais, legítimas, em resumo, porque permitem fazer da nossa sociedade um lugar melhor.

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Mas, os sommeliers da vacina têm seus defensores. Juristas leguleios, que não têm ou parecem não ter formação jurídica. Sintetizam a solução do assunto ao inciso II do artigo 5º da Constituição (ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei). Os que defendem os sommeliers da vacina leem o direito com antolhos do pacta sunt servanda, limitando o direito à missão de manter tudo exatamente como está, custe o que custar.

Dado o contexto, esse artigo deveria ser desnecessário, mas infelizmente não o é. Especialmente porque os sommeliers de vacina, acompanhados de seus defensores, falseiam o direito para assustar gestores públicos e servidores de saúde responsáveis por postos de vacinação. Tento com esse artigo auxiliar a esses agentes públicos, que lutam diariamente para que a imunização contra a COVID seja uma realidade nacional. Penso que esse conteúdo pode ser útil para afastar o desconhecimento e o egoísmo daqueles que, além de não fazer o pouco que se pede, teimam em atrapalhar a vitória contra a pandemia.

Assim, de início, é preciso compreender o que é a vacinação no contexto jurídico brasileiro. Essa compreensão é relevante, na medida em que boa parte da sociedade entende que a vacina é uma comodidade ofertada, cujo objetivo é proteger o indivíduo de uma determinada doença. Ou seja, a visão de que a vacinação é uma forma de prestação de serviço público de saúde é muito comum. Esse entendimento, apesar de equivocado, é bastante compreensível, na medida em que o cidadão vai se vacinar com a motivação de se proteger da doença. Mas, é essa mesma compreensão que induz o pensamento de que o indivíduo pode escolher se irá ou não se vacinar, bem como qual vacina irá tomar.

A vacinação, esclareço, é uma técnica de saúde coletiva voltada a controlar doenças transmissíveis, epidemias e pandemias. É o que se extrai da Lei nº 6.259/75, instituidora do PNI - Programa Nacional de Imunizações. Assim, se objetivo maior da vacinação é evitar a proliferação de certa doença, o cidadão que recebe a vacina está primeiro colaborando para esse objetivo e, em decorrência disso, também acaba tendo um significativo benefício para sua saúde. O indivíduo, portanto, é um instrumento necessário para um objetivo coletivo. E, é bom que se diga, ser instrumento, nesse caso, não só não retira a condição de dignidade do cidadão, como a amplia.

Importante relembrar que a construção legal do PNI, feita em 1975, é integralmente abraçada pela Constituição de 1988. Isso fica claro quando da norma constitucional se extrai que o direito à saúde do cidadão será atendido dentro de um sistema de políticas sociais que privilegiem as ações protetivas e preventivas (vide artigos 196 e 198 da CF). Ou seja, o direito à saúde é garantido por políticas coletivas que provocam resultados individuais; não o contrário. E essa maneira de atender o direito à saúde está inegavelmente conecta com os objetivos da República previstos no artigo 3º da Constituição, com destaque para a construção de uma sociedade solidária (inciso I) que promova o bem de todos (inciso IV). Nesse contexto, mesmo não possuindo o conteúdo da lei formal, as normas que confrontam as posturas dos sommeliers da vacina (na maioria decretos municipais) são evidentemente constitucionais, pois cuidam unicamente de dar concretude a mandamentos da Constituição. Representam aquilo que se conhece como decreto autônomo.

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Avançando, ainda para aclarar a lógica do benefício coletivo, é importante relembrar que a vacinação tem esse viés porque protege os vacinados (de forma direta), mas também indiretamente os não vacinados, na medida em que diminui a transmissibilidade da doença. A ideia é que os não vacinados tenham tal status, não em razão da escolha de receberem ou não o insumo, mas porque certos limites, científicos e/ou econômicos, inviabilizam que a vacinação alcançasse toda a população. Em casos assim, os vacinados criam um escudo protetor para aqueles que não tiveram a oportunidade de se vacinar, viabilizando a conquista social da imunização coletiva.

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É nesse contexto que surge o tema da obrigatoriedade da vacinação. A escolha por um critério impositivo ou não opcional é científica e/ou econômica, pouco tendo a ver como o exercício de certa liberdade individual. No caso da COVID, por exemplo, a obrigatoriedade da vacinação ainda não adveio, muito provavelmente porque a quantidade estimada de vacinados ultrapassará aquele mínimo necessário para o controle da pandemia. Se tal estimativa não se confirmar no futuro, a obrigatoriedade deverá vir, pois, sem ela, a missão primeira da vacinação não será atingida.

E é essa linha de raciocínio que afasta qualquer legitimidade sobre a possibilidade de se escolher a vacina. O cidadão, sendo primeiro instrumento e depois beneficiário da campanha de vacinação, tem (ao menos enquanto a vacinação não for obrigatória) a opção de atender ao chamado para se vacinar, dentro das condições estabelecidas. Nessas condições, não há (e se houvesse não faria sentido) a alternativa da escolha arbitrária do tipo de vacina. Permitir essa escolha, ademais, significaria conceder tratamento distinto a indivíduos em mesmas condições, fato que violaria o princípio constitucional da igualdade, conhecido como princípio da equidade, quando o assunto é ações e serviços de saúde no âmbito do SUS.

Assim, só é possível concluir que a tentativa de escolher a vacina equivale à escolha de não querer se vacinar. Ambas significam a não adesão do cidadão à política de vacinação, estabelecida com o objetivo de se conquistar a imunização coletiva. O tratamento a ser dado aos sommeliers da vacina deve ser o mesmo destinado aos antivacinas. Por ora, enquanto não obrigatória, respeita-se a escolha de não querer se vacinar, interpretando-se a decisão de não querer certa marca de vacina da mesma forma que se lê a postura dos que não comparecem para se vacinar.

*Silvio Guidi é advogado sanitarista, mestre em direito administrativo pela PUC-SP e sócio do Vernalha Pereira Advogados

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