O pulmão do Parlamento brasileiro, após o sopro vital inalado do povo nas ruas, ao invés de respirar democraticamente, parece dar novos sinais de asfixia representativa. Se a rejeição da PEC da Impunidade, que proibia o Ministério Público de investigar, simbolizava ares de esperança de uma vida legislativa ventilada pela pulsação legítima da sociedade, deliberações que, hoje, entram na ordem do dia, ferem de morte o corpo social manifestante.
Em passado não muito distante, foram sepultados, juntos com aquela PEC, os textos substitutivos intermediários - que, na prática, proibiam a investigação sem proibir -, acenando-se para a população que ao Ministério Público está entregue a função geral de investigação criminal, de forma livre e independente. Apesar da reivindicação popular obedecida, o oxigênio das manifestações populares de junho de 2013 parece ter chegado ao fim nos cilindros do Congresso Nacional.
Naquela ambiência de protestos públicos, o projeto de lei sobre as "10 medidas contra a corrupção", agora em discussão, foi iniciado diretamente pelo povo, como um grito enérgico pelo titular soberano do poder que é. Mas, à surdez deliberada de seus representantes políticos, acabou de todo invertido no seio do Poder Legislativo.
Ou seja: o Legislativo fez, exata e precisamente, o contrário do que o povo pediu: o projeto popular que visava combater à corrupção converteu-se em programa de criminalização da conduta de promotores e juízes que investigam a corrupção.
De acordo com a proposta aprovada, a instauração de procedimentos investigatórios sem indícios de prova passa a configurar crime praticado pelo promotor, podendo ser preso. Ora, mas a instauração de investigação não se destina justamente a colher indícios de prova? E a quem compete avaliá-los? Além disso, o projeto criminaliza a violação à prerrogativa de advogados. Significa dizer que, se houver necessidade de preservação de sigilo das investigações para que o investigado não prejudique a apuração de crimes, e o promotor ou o juiz negar-lhes acesso aos autos, poderão responder e ser presos.
Por outro lado, o projeto ainda confere aos investigados o poder de processar criminalmente o promotor que os investigue e o juiz que os condene, por algum tipo de inconformismo com o exercício dos respectivos ofícios. Então, promotores e juízes, ao investigarem a corrupção, serão investigados pelos advogados de corruptos, por ordem deles. Não bastasse, poderão ser processados, condenados e presos se prestarem contas à população a respeito de casos sob a sua apreciação quando, ao contrário, a Constituição impõe um dever de transparência e publicidade referente aos atos estatais.
Ocorre que o Ministério Público, assim como a Magistratura, não defende o interesse particular de ninguém, nem percebe honorários para o desempenho do seu trabalho, personificando valiosos interesses da sociedade. Portanto, o contra-ataque ao Ministério Público configura um ataque contra toda a sociedade, representada naquela Instituição, e o pior, desferido por aqueles que deveriam encarnar o seu espírito.
Desse modo, aprovado à toque de caixa, sem discussão social, esconde-se o propósito de intimidar e amordaçar o Ministério Público e a Magistratura em sutilezas técnicas que a opinião pública, na velocidade da vida, não consegue vislumbrar, impedindo o enfrentamento da pior chaga do país. É como se tampassem a ferida para o paciente não mais ver, e o sangue agora escorresse letalmente sem o sofrimento popular.
O perigo, portanto, não são eventuais excessos funcionais de integrantes do Sistema de Justiça, já coibidos pelas instâncias correicionais competentes. O verdadeiro risco para a democracia reside na falta de compromisso com a vontade geral fundamental, manifestada na lei de iniciativa popular, como também na ausência de reconhecimento por parte de um Poder do Estado em relação à autoridade de outro Poder ou suas Instituições essenciais e, ainda, na desconstrução total do desenho institucional elaborado pelo Constituinte originário.
Presentes tantos vícios, males e defeitos na legislação que o Congresso Nacional busca implementar, trocando os sinais do projeto que a população enviou sob novos ares de esperança representativa, não deveria transformá-lo em vontade legislativa de vingança, cuja infecção da ferida o povo ajudou a estancar. É o que o país espera na sequência parlamentar das votações.
*Tulio Caiban Bruno, promotor de Justiça. Diretor de Defesa de Direitos e Prerrogativas Funcionais/AMPERJ