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Legislação de fomento à cultura e os desafios da vida prática: quando a norma não alcança a realidade

A necessidade de uma lei federal que regulamente o Sistema Nacional de Cultura-SNC está expressamente prevista no artigo 216-A da Constituição Federal desde 2012. Como bem sabemos, ela não foi criada até hoje.

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Por Cecilia Rabêlo
Atualização:

Cecilia Rabêlo. Foto: Divulgação.

Os projetos de lei para criação dessa norma, no entanto, se acumulam no Congresso Nacional. Um ponto em comum entre eles é a falta de objetividade em relação ao aspecto prático desse fomento: como repassar recursos para o setor artístico e cultural sem que os beneficiários desses recursos se tornem inadimplentes ou sejam obrigados a devolver o dinheiro daqui alguns anos? Ou sem que os gestores fiquem temerosos em relação ao futuro julgamento dos Tribunais de Contas em relação aos meios utilizados para que o recurso chegue até a ponta?

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Dos projetos de lei aos quais tive acesso (PL 9474/2018, PL 1801/2019, PL 1971/2019), nenhum deles trata sobre os aspectos práticos do fomento ao setor artístico e cultural. A grande maioria, na verdade, se limita a repetir, de forma mais extensa e detalhada, os princípios e objetivos já previstos no art. 216-A da Constituição Federal, que trata sobre o SNC.

Mesmo a lei Aldir Blanc ou o Projeto de Lei Complementar nº 73/2021, denominado de "Lei Paulo Gustavo", não adentram nas questões mais espinhosas do dia a dia da gestão pública de cultura. Quais instrumentos jurídicos utilizar? Prêmio e incentivo cultural é a mesma coisa? Fomento é licitação? Precisa só cumprir o objeto ou tem que prestar contas financeiras, dizendo onde gastou cada centavo (e explicando o porquê)? Tem que fazer pesquisa de mercado de cada item a ser adquirido? Afinal, pode adquirir bens com recurso de fomento? De quem é a propriedade desses bens?

Claro que a Lei Aldir Blanc e a futura Lei Paulo Gustavo não têm o condão de regulamentar o SNC ou mesmo resolver as questões burocráticas da gestão pública de cultura. São normas emergenciais, que visam socorrer o setor duramente afetado pela pandemia.

Ocorre que, por não adentrarem na minúcia dos instrumentos jurídicos, das regras de aferição do cumprimento do objeto e/ou prestação de contas, sobre a prática da execução desses recursos, elas acabam por cair em uma imensa lacuna normativa onde cabe tudo: no final das contas, para executar essas normas, cada ente federado utiliza a regra que entende mais adequada, e quem sofre com isso é o próprio setor que se buscava socorrer, perdido em um emaranhado jurídico de difícil compreensão (até mesmo para os profissionais da área).

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Estar em uma Assessoria Jurídica de um órgão de cultura é ter, de um lado, o Tribunal de Contas e as Controladorias cobrando rigidez e controle do Gestor no fomento e, do outro, o setor artístico e cultural requerendo instrumentos viáveis e condizentes com a realidade da sua prática.

É uma balança impossível de ser equilibrada sem uma legislação clara e específica para o fomento à cultura. Uma norma corajosa, capaz de se basear no caráter de direitos fundamentais que têm os direitos culturais, na competência legislativa expressamente prevista na Constituição para tratar de cultura e no dever expresso, também previsto na norma constitucional, de fomentar o setor.

É preciso coragem, mas é preciso também aprofundamento, estudo, pesquisa e conhecimento prático de quem vive a gestão pública de cultura e a realização/produção de projetos/ações culturais fomentados. Replicar princípios genéricos, objetivos extensos e metas pouco quantificáveis não nos ajudará a tornar a política de fomento à cultura realmente efetiva, sem danos tanto para o gestor quanto para a sociedade civil.

É preciso criar normas de repasse de recurso. Sim, é urgente e necessário! Mas é também urgente e necessário falar do depois, do que e como faremos com esses recursos, para evitar que ele seja repassado, controlado e executado de forma inadequada, o que gera, sem dúvidas, problemas para todos os lados.

A aplicação de instrumentos jurídicos, mecanismos de repasse e normas inadequados para o fomento ao setor artístico e cultural é, a meu ver e ao lado da escassez de recursos, o maior problema da gestão pública de cultura em nosso país.

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Se não encararmos esse desafio, o recurso pode até chegar no órgão gestor de cultura e ser repassado ao setor, mas continuaremos com os mesmos problemas de inadimplência nas prestações de contas, devolução de recursos, gestores com contas reprovadas e um fomento que causa mais problemas do que soluções.

*Cecilia Rabêlo, presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, (IBDCult), advogada em Cultura e Economia Criativa, mestra em Direito Constitucional e especialista em Gestão e Políticas Culturais   

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