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Lavar as mãos: o que o ato de Pilatos nos ensina sobre a pandemia do novo coronavírus no sistema prisional

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Por Mariana Madera Nunes e Sarah Piancastelli
Atualização:

Mariana Madera Nunes. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

A declaração pública de situação de pandemia em relação ao novo coronavírus pela Organização Mundial da Saúde levou o Conselho Nacional de Justiça a recomendar a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pela covid-19 - Recomendação n. 62, de 17 de março de 2020[1] -, tendo em vista que a manutenção da saúde dos presos é essencial para a garantia da saúde coletiva e que um cenário de contaminação em grande escala produz impactos significativos para a segurança e saúde de toda a população.

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A Recomendação do CNJ é clara em propor alternativas à aplicação de medidas de internação provisória a menores infratores; ao encarceramento de mulheres gestantes, integrantes do grupo de risco para a doença, custodiados em estabelecimentos superlotados ou em situação vulnerável e presos recolhidos há mais de 90 dias; além de sugerir a saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto e a concessão de prisão domiciliar.

Nesse cenário crítico, os Tribunais e magistrados de todo o país têm adotado medidas compatíveis com a Recomendação n. 62/CNJ, havendo o Departamento Penitenciário Nacional estimado em 30 mil o número de pessoas liberadas em razão do risco de contaminação[2], o que, considerado o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias[3], corresponde a menos de 4% da população carcerária.

De fato, consideradas as unidades prisionais e outras carceragens, no período de janeiro a junho de 2019, o número de pessoas privadas de liberdade no Brasil era de 766.752, representando um déficit de vagas da ordem de 306.002, de modo que o "fator covid-19" contribuiu somente para reduzir a superlotação prisional em menos de 10%, ainda que o número de liberações possa parecer alto para os mais desatentos.

É alta a probabilidade de que o sistema prisional nacional se torne o epicentro de contaminação do novo coronavírus no Brasil, tendo em vista, notadamente, a aglomeração de pessoas de forma extremamente precária, a inobservância dos procedimentos de higiene e a insuficiência das equipes de saúde. Nada obstante, na contramão da recomendação de soltura, o Ministério da Justiça e Segurança Pública defendeu, em coletiva oficial no dia 31.03.2020, que os detentos não sejam colocados em liberdade "indiscriminadamente" - o que, definitivamente, não é o caso, daí porque elencados diversos critérios na Recomendação n. 62/CNJ -, chegando a citar um falso exemplo, posteriormente retificado, de alguém que teria sido preso novamente, na posse de drogas e armas, após soltura em razão da pandemia.

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A situação caótica e nunca antes enfrentada acabou por desestruturar a sociedade de forma drástica. A rápida veiculação de informações e o fácil acesso às redes sarcasticamente problematizaram a comunicação. Um grande volume de anúncios, dados e opiniões sem controle da origem criaram um ambiente instável e pronto para pressionar quem está à frente por uma solução ainda não decifrada. Tais atitudes descuidadas são reflexo da excessiva pressão da população que procura no Estado compatibilidade com sua opinião pessoal, sem se atentar ao embasamento técnico e, sobretudo, justo e humanitário que envolve a adoção de cada nova medida.

É claro que a atuação pública deve se atentar à vontade da população, mas nunca se sobrepor ao dever legal, de maneira que os juízes devem tomar suas decisões com base no atual cenário deflagrado, sem medo do julgamento de parte dos jurisdicionados, pautados no dever da justiça e em atenção aos valores mais caros, sendo a vida o mais soberano.

Aliás, o peso do apelo dos cidadãos na tomada de decisões é histórico e ainda mais enviesado do que se imagina.

Há 2020 anos, por clamor social, Jesus Cristo era condenado à crucificação pelo governador romano Pôncio Pilatos na Judeia[4]. O tribunal judaico, apesar de já ter decidido pela morte de Cristo, não possuía competência para aplicar tal sanção, uma vez que somente o Império Romano, encabeçado por César, poderia fazê-lo. Assim, em meio a acusações relacionadas ao não pagamento de impostos e a declarações de ser representante de Deus na Terra, os judeus o entregaram ao Governador.

No entanto, ao interrogar Jesus Cristo, Pilatos ficou convencido da sua inocência, criando revolta na população ao afirmar aos judeus que não achava nele crime algum (João 18:38). O governador romano decidiu, então, declarar sua incompetência para julgar o caso, enviando Jesus, que era galileu, a Herodes[5], o rei da Galileia, que, após diversas perguntas respondidas com o silêncio de Cristo, não viu qualquer motivo para a sua condenação, o enviando de volta para a Judeia.

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Mais uma vez perante Pilatos, Jesus foi novamente absolvido. O governador disse ao povo: "Haveis me apresentado este homem como pervertedor do povo; e eis que, examinando-o na vossa presença, nenhuma culpa, das de que o acusais, acho neste homem. Nem mesmo Herodes, porque a ele vos remeti, e eis que não tem feito coisa alguma digna de morte. Castigá-lo-ei, pois, e soltá-lo-ei" (Lucas 23:14-16).

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Tal episódio se deu durante o feriado de páscoa, ocasião em que era tradição perdoar e libertar um prisioneiro. Pilatos, convencido da inocência de Jesus Cristo, conclamou o povo a escolher entre Jesus e Barrabás, apontado no Novo Testamento como salteador ou assassino, quem deveria receber o benefício, certo de que a resposta seria o primeiro.

Surpreso e pressionado com a proclamação da libertação de Barrabás, contrariando as próprias convicções, Pôncio Pilatos submeteu-se à pressão popular e condenou Jesus Cristo à crucificação, sem antes lavar suas mãos perante o povo, dizendo-lhes: "sou inocente do sangue deste homem; seja isso lá convosco" (Mateus 27:24-25).

Em verdade, a morte de Jesus Cristo não é a primeira ou última injustiça causada por julgadores que se deixam conduzir pelo medo da reação pública ou por suas inclinações pessoais. A soltura de presos no contexto da pandemia, de forma excepcional, porém efetiva, é assunto delicado, mas nunca capaz de receber mais atenção do que a vida em si. A teor dos direitos e garantias fundamentais positivados na Constituição Federal, a reavaliação das prisões é imprescindível para que não se faça necessária a valoração das vidas.

Com efeito, a vida não pode ser tida como um privilégio de quem cumpre a lei, até mesmo porque as pessoas encarceradas o estão, justamente, também em razão do caráter retributivo do cumprimento da pena, momento a partir do qual, em tese, conquanto o Estado não ofereça as condições necessárias, estarão aptos a retornarem ao convício social.

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O ato que levou Jesus à morte é, agora, o que pode nos salvar dela. A empatia pela vida, seja de quem for, tem o poder de criar um novo marco histórico: a memória do período que o mundo se uniu contra o derramamento de sangue, abdicando da argumentação jurídica distorcida e rompendo com a falta de coragem que se perpetua no nosso sistema punitivista de encarceramento em massa.

*Mariana Madera Nunes, advogada na Mudrovitsch Advogados, ex-Assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, pós-graduada em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito e bacharela em direito pela UFBA

*Sarah Piancastelli, advogada na Mudrovitsch Advogados, pós-graduanda em Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e bacharela em direito pelo Centro Universitário de Brasília

[1] Conselho Nacional de Justiça, Recomendação n. 62, de 17 de março de 2020. Disponível em: . Acesso em: 08.04.2020.

[2] Depen estima que 30 mil presos tenham sido liberados por decisões judiciais durante a pandemia. Disponível em: . Acesso em: 08.04.2020.

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[3] DEPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Jun/2019. Disponível em: . Acesso em: 08.04.2020.

[4] A IGREJA DE JESUS CRISTO. O julgamento e a condenação. Disponível em: . Acesso em> 08.04.2020.

[5] CONEGERO, Daniel. Quem foi o Rei Herodes? Estilo Adoração. Disponível em: . Acesso em: 08.04.2020.

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