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LAI e LGPD: a compatibilização necessária

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Por Marcelo Issa e Bruno Schimitt Morassutti
Atualização:
Marcelo Issa e Bruno Schimitt Morassutti. FOTOS: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em julho de 2018, pouco antes de morrer, Claudio Weber Abramo, um dos patriarcas da defesa da transparência governamental no Brasil e diretor-executivo da Transparência Brasil por mais de 15 anos, publicou um artigo na imprensa em que alertava para o risco de que o então projeto de lei de proteção de dados pessoais acabasse por comprometer o acesso a informações de interesse público.

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Embora já bastante doente, Abramo manteve-se contundente e visionário naquele que - infelizmente - seria seu último texto publicado. Nele, alertava que a proposta recém-aprovada pelo Congresso Nacional poderia trazer graves retrocessos ao exercício da cidadania e apontava o risco de que vissem a ser tornadas secretas, por exemplo, as bases de dados dos filiados a partidos políticos.

Pois foi precisamente isso o que ocorreu em agosto deste ano, quando a Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD (Lei 13.709/2018) entrou em vigor, e o Tribunal Superior Eleitoral retirou do ar lista de filiados por partido, estado, município e zona eleitoral.  É preciso registrar ainda que o TSE tomou tal decisão unilateralmente, sem houvesse qualquer determinação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados ou consulta à sociedade civil.

Passados poucos meses desse episódio e do início da vigência da LGPD, já se acumulam diversos outros casos bastante questionáveis. O Ministério da Economia, por exemplo, buscou usar a lei para negar acesso à lista de indivíduos e empresas autuados por trabalho escravo; o Ministério da Agricultura vetou a divulgação de dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) sob o mesmo fundamento; e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República insiste em usar a nova legislação para impedir a divulgação da relação de visitantes do Palácio do Planalto.

É evidente que a LGPD é uma legislação necessária, que resguarda direitos extremamente relevantes, mas a Constituição Federal protege tanto o direito à privacidade quanto o direito de acessar informações de interesse público, de onde decorre que doutrina e a jurisprudência hegemônicas reconhecem que o dever de transparência e prestação de contas necessariamente deve prevalecer quando se está diante de dados e informações pessoais que digam respeito ao exercício de cargos e funções públicas ou que possam ser relevantes para o pleno exercício da cidadania. Isto, aliás, possui previsão constitucional no parágrafo único do art. 70 da Constituição Federal e foi reforçado pelo Supremo Tribunal Federal em 2011 quando do julgamento acerca da divulgação de informações funcionais de agentes públicos.

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De acordo com a LGPD, dado pessoal é toda informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável (art. 5, I).  Ora, como também corretamente apontado por Claudio Weber Abramo, a identificação inequívoca de um indivíduo perante a sociedade ou o Estado só é possível mediante a verificação de sua inscrição em algum tipo de cadastro, público ou privado. Daí decorre logicamente que essa informação isolada não pode ser considerada dado pessoal. Do contrário, só seria possível identificar alguém por meio da violação de sua privacidade, o que constituiria - no dizer de Abramo - um verdadeiro círculo vicioso.

A Lei de Acesso a Informação - LAI (Lei 12.527/2011), que contou com a decisiva colaboração  do então diretor-executivo da Transparência Brasil, embora discipline o direito difuso de obter dados e informações socialmente relevantes sob a tutela do Estado ou de entidades sem fins lucrativos que os detenham em razão de projetos ou políticas públicas desenvolvidos em conjunto com órgãos governamentais, parece ter caminhado melhor nas diretrizes do que seriam informações pessoais dignas de preponderar sobre o interesse público, ao restringi-las àquelas que possam comprometer a intimidade e a honra das pessoas no âmbito da vida privada (art. 31).

Dados cadastrais, portanto, a princípio não devem ser considerados dados pessoais, e não devem ser considerados sensíveis especialmente quando as inscrições tenham sido realizadas voluntariamente e sejam referentes às atividades comerciais ou condições socioeconômicas de quem desempenhe função pública, ocupe ou pretenda ocupar cargo público, ou ainda decida transacionar com o poder público.

Da mesma forma, conhecer a composição dos partidos políticos é pré-requisito para o pleno exercício da cidadania e, portanto, as bases de dados de filiados a partidos políticos não deveriam ter sido incluídas no rol do que se considera dado sensível. Afinal, imagine-se alguém que queira filiar-se a um partido. Essa pessoa não tem direito de saber quem são os demais filiados antes de decidir a respeito?

Os prejuízos dessa opção equivocada já são perceptíveis. Nas últimas semanas, por exemplo, vieram à tona denúncias de suposta fraude em processos de registro de filiação para beneficiar um dos pré-candidatos a presidente da República nas prévias de um dos maiores partidos do país. As acusações davam conta de que os registros da filiação teriam sido realizados com data retroativa no sistema da Justiça Eleitoral para beneficiar um dos competidores.

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Dada a inegável relevância desse tipo de questão para toda a sociedade brasileira, tais dados precisariam ser públicos, a fim de que se pudesse levantar a frequência desse tipo de expediente no sistema partidário como um todo e, assim, não apenas realizar comparações e averiguar a eventual consistência das denúncias, mas também identificar possíveis fragilidades nos procedimentos de controle envolvidos, com vistas a aprimorá-los e torná-los mais infensos a fraudes dessa natureza. O Transparência Partidária cogitou levantar tais informações, mas não pôde fazê-lo porque os dados não estão mais disponíveis.

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Em seu profético e derradeiro artigo, Claudio Weber Abramo também advertiu que haverá enorme retrocesso no acesso a informações de interesse público caso a nova Autoridade Nacional de Proteção de Dados não defina claramente que números cadastrais - a princípio - não são dados pessoais sensíveis.

Se não o fizer, e a julgar pelo que ocorreu com as bases de dados dos filiados aos partidos políticos, corre-se sério risco de que dados como o CPF ou a declaração de bens dos candidatos nas eleições do ano que vem já não estejam mais disponíveis para consulta pública. Caso isso ocorra, não será mais possível à imprensa e organizações da sociedade civil verificar a evolução patrimonial de candidatos, processos a que políticos respondem na Justiça ou em tribunais de Contas, eventuais indícios de envolvimento com trabalho escravo, crimes ambientais ou de corrupção etc.

Nos últimos anos, os mecanismos de transparência e controle têm sido alvo de uma série de tentativas de desmonte. A própria Lei de Acesso a Informação só não foi significativamente esvaziada no início de 2019 porque houve forte reação da opinião pública. O mesmo ocorreu com as propostas de mudança constitucional que pretendiam ampliar indevidamente a imunidade parlamentar e o controle político sobre o Ministério Público. Outras iniciativas, no entanto, concretizaram-se e devem produzir graves retrocessos para o combate à corrupção e o controle social da coisa pública. É o caso, por exemplo, do aparelhamento de parcelas das polícias, de órgãos de persecução penal e de fiscalização financeira e ambiental. Mais recentemente, as alterações na Lei de Improbidade Administrativa devem provocar efeitos perversos para a promoção da integridade no país. É nesse contexto que se faz necessário repensar a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais para que essa relevante legislação não venha a ser mais uma peça nesta triste engrenagem.

Caso se confirme uma interpretação demasiadamente expansiva da LGPD, até mesmo bases de dados e análises de interesse público já existentes e realizadas corriqueiramente podem ter de ser retiradas do ar. É urgente, portanto, compatibilizá-la adequadamente com a Lei de Acesso a Informação e todo o marco regulatório afeto a transparência pública. Caso não se proceda a uma reflexão rápida e aprofundada a respeito, estabelecendo-se parâmetros seguros para resguardar tanto a privacidade dos cidadãos quanto o direito de acessar as informações necessárias para o pleno exercício da cidadania, há grave risco de ver-se uma espiral de decisões equivocadas que leve à gradativa substituição da cultura da transparência sobre o que é de interesse público pela antiga e nefasta cultura do segredo e do sigilo.

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*Marcelo Issa, cientista político e advogado, é diretor executivo do Transparência Partidária e membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil

*Bruno Schimitt Morassutti, advogado e mestre em direito, é conselheiro da Agência Fiquem Sabendo e membro da Open Knowledge Brasil

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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