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Direito de ir e vir e controle da pandemia dividem advogados sobre ação da Procuradoria por teste da Covid-19 em voos domésticos

Ação do MPF pede que passageiros que não tenham exame negativo para a doença sejam impedidos de embargar em viagens para qualquer destino do País; dez fatores são apresentados para justificar o requerimento, como o agravamento da crise sanitária e a descoberta de nova cepa em Manaus

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Por Redação
Atualização:

Aeroporto de Congonhas. Foto: Werther Santana/Estadão

O Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública na Justiça Federal do Ceará pedindo que a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a União exijam o exame de Covid-19 para passageiros e tripulantes em voos nacionais. O órgão considera dez fatores que devem ser observados neste momento, entre eles o agravamento da crise sanitária no País e a descoberta de uma mutação do coronavírus em Manaus, que pode ser mais infecciosa. 

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Advogados constitucionalistas, civilistas e penalistas ouvidos pelo Estadão divergem quanto à pertinência do requerimento do MPF. A advogada constitucionalista Vera Chemim, por exemplo, diz que o 'MPF tem a competência e responsabilidade com o interesse público, o que justifica o pedido de apresentação de teste para a Covid perante a Justiça'. O criminalista Daniel Gerber, por sua vez, vai em sentido contrário e alega que essa 'é mais uma ilusão de grandiosidade do Ministério Público Federal, que ignora os dados da vida real'. 

Na ação, os procuradores defendem que sejam proibidos de embarcar aqueles que não apresentarem exame de detecção do tipo RT-PCR com resultado negativo para o novo coronavírus, feito com antecedência máxima de 72 horas da partida do voo ou de seu desembarque. Marcus Vinicius Macedo Pessanha, especialista em Direito Público Administrativo e Regulatório e sócio do Nelson Wilians Advogados, diz que a demanda do MPF trata-se de limitação à liberdade de locomoção baseada no poder de polícia sanitário: "Com vistas a evitar a disseminação do coronavírus desordenadamente pelo país, é uma restrição excepcional e por prazo delimitado, prevista inclusive na Lei nº 13.979/2020, a lei da pandemia".

Já Felipe Bonsenso, especialista em Direito Aeronáutico, critica a iniciativa. "Não há nenhuma comprovação de que aeronaves são mais propícias para disseminação do vírus. Pelo contrário: a alta tecnologia empregada nos sistemas de filtros e reciclagem de ar coloca a aviação em posição mais segura do que transporte rodoviário e metroviário", afirma. "Exigir teste PCR em voos domésticos e em voos privados é desproporcional e descabido, prejudicando a atividade das empresas aéreas e podendo ocasionar redução na demanda". 

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O advogado sustenta que  'em linhas gerais, voos privados são realizados sem comercialização de assentos e nada difere do cidadão que dirige de uma cidade a outra'. "Questiona-se, portanto, a real efetividade da medida face aos prejuízos que poderá causar para consumidores e empresas, bem como em questão de proporcionalidade com outros meios de transporte. Vale notar que medidas equivalentes chegaram a ser discutidas nos Estados Unidos e não prosperaram, limitando-se a exigência de teste PCR para voos internacionais apenas, com objetivo de evitar propagação do vírus entre países, além de voos geralmente mais longos", comenta.

Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em Direito Público Administrativo pela FGV, lembra que a livre locomoção é garantida pelo inciso XV do artigo quinto da Constituição, que trata das garantias e direitos fundamentais individuais e coletivos. Por outro lado, esta pode ser restringida, "desde que dentro dos parâmetros da razoabilidade e proporcionalidade".

Chemim explica que a solicitação está dentro do que é previsto na atuação do Ministério Público Federal. "Por sua vez, o MPF tem a competência e responsabilidade com o interesse público, o que justifica o pedido de apresentação de teste para a Covid perante a Justiça, levando em conta o agravamento da crise. A Lei 13.979/2020, em seu artigo segundo, disciplina as medidas para enfrentamento da crise sanitária, entre elas, o isolamento e a quarentena, ambas prevendo a separação de pessoas doentes ou contaminadas, assim como as bagagens e meios de transporte no sentido de evitar a contaminação ou a propagação do vírus. Na mesma direção, o artigo terceiro prevê determinação de realização compulsória de exames médicos e testes laboratoriais", informa.

A advogada analisa que a Justiça pode dar provimento à ação, 'visando a proteção das pessoas por um tempo determinado e desde que não afete ou prejudique desproporcionalmente a sua liberdade de locomoção e rotina'. "Em síntese: atendidos os princípios da razoabilidade e proporcionalidade em consonância com a Constituição Federal de 1988 e a Lei 13.979/2020, creio que a medida não afrontaria a Constituição, até porque seria excepcional e temporária", complementa.

Adib Abdouni, especialista em Direito Constitucional e Criminal, traça uma análise semelhante e salienta que ação do MPF só ocorre devido à 'inércia do Poder Público'. "Presente a ausência de uma política sanitária contundente de caráter nacional para conter a disseminação da pandemia (notadamente em relação às novas cepas da Covid-19 que apresentam maior grau de transmissibilidade), a inércia do Poder Público autoriza o Ministério Público Federal (dotado de competência legal para zelar pelos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos serviços de saúde) a reivindicar junto ao Poder Judiciário a tutela jurisdicional apta a resguardar a saúde pública - a exemplo da exigência dos testes prévios de detecção da doença. Sem que isso implique em malferimento a direitos constitucionais alusivos à garantias individuais do cidadão, tendo em vista a excepcionalidade e transitoriedade da medida resultante da implementação de mecanismos limitativos de direitos para o enfrentamento da situação emergencial", diz.

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O criminalista Daniel Gerber, sócio no escritório Daniel Gerber Advogados Associados, discorda e afirma que a medida é um devaneio. "É mais uma ilusão de grandiosidade do Ministério Público Federal, que ignora os dados da vida real, o conceito de liberdade de ir e vir, e acredita em ilusões, como se fosse possível uma testagem de tal porte em todas as cidades de onde partem ou para onde chegam voos. Ainda pior é perceber o MPF considerar que, ao se realizarem tais exames, a situação estará efetivamente controlada, ignorando ônibus e metrôs lotados, favelas e aglomerações de pessoas - cada vez mais uma realidade em todo o território nacional. Tal medida é verdadeiramente kafkaniana, resultará em uma quebra ainda maior das já combalidas companhias aéreas, e apenas retrata uma ilusão de poder que, infelizmente, acomete alguns dos integrantes de tão respeitada instituição", diz Gerber.

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