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Juiz detona sistema carcerário e põe acusado de tráfico em domiciliar

'Nos presídios, o Estado financia o embrutecimento do homem, sua piora moral, aprimora a sua insensibilidade ética e o devolve piorado à sociedade, para espalhar o terror, a morte e a tristeza', alerta Océlio Nobre, da 1.ª Vara Criminal de Colinas do Tocantins

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Por Julia Affonso
Atualização:

 Foto: Miguel Saavedra/Free Images

Em verso e prosa, o juiz Océlio Nobre, da 1ª Vara Criminal de Colinas do Tocantins (TO), autorizou prisão domiciliar a um acusado de tráfico de drogas com suspeita de 'perturbação da saúde mental'. Em decisão de 4 de outubro, o magistrado detonou o sistema carcerário ao permitir a remoção do acusado.

"Nos presídios, o estado financia o embrutecimento do homem, sua piora moral, aprimora a sua insensibilidade ética e o devolve piorado à sociedade, para espalhar o terror, a morte e a tristeza", afirmou o magistrado.

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Documento

A DECISÃO

"O Estado brasileiro e, particularmente do Tocantins, parece que ocorre uma destituição do homem condenado da condição de pessoa, pois o cumprimento das penas de prisão se dá no mais hediondo dos ambientes, numa espécie de arena, onde os mais fortes ditam as regras e o Estado nada faz para se impor. De outro lado, amontoado como 'imundices' no depósito de restos humanos, onde adoecem, se deterioram enquanto pessoas, morrem como prisioneiros em campo inimigo e, tudo sob olhar frio dos agentes públicos. Estado e sociedade sabem de tudo o que acontece, mas os tratam, em definitivo, como seres descartáveis, a quem não se aplica quase nada das garantias inseridas na Constituição Federal."

Océlio Nobre ordenou a prisão domiciliar, 'apesar de não encontrar respaldo na legislação pátria'.

Ao justificar a custódia, o juiz afirmou que, segundo a legislação, o preso 'acometido de doença mental no curso do cumprimento da pena deverá ser internado em manicômio judiciário, onde lhe seja assegurado custódia'.

"Há notícia de que um reeducando, que cumpre pena pela prática de crime hediondo (tráfico de drogas), perdeu a higidez mental. A lei manda transferi-lo para um estabelecimento adequado que não existe, nunca existiu e sequer existe projeto para sua construção ou, mais singelamente, sequer temos psiquiatras à disposição para realizar o exame de insanidade mental, tanto é assim, que a fila de espera para realizar perícias de interditandos já ultrapassa a barreira dos 12 meses. Ai, vem a pergunta? O que fazer?", questionou Océlio Nobre.

O juiz prosseguiu. "Ignoramos a Constituição e o deixamos na cadeia até que o sorte o salve ou que a morte o colha? Cobrar do Estado a solução apontada pela lei parece que ninguém o fará!!!! Se o reeducando morrer o problema estará resolvido né? A questão é mais complexa, porque outros reeducandos virão, a menos que, silenciosamente, internalizemos práticas nazistas, rotuladas de "precariedades do sistema", que levam à morte os insanos mentais e os delinquentes, que incomodam a sociedade e geram desgastes políticos aos governantes."

Na decisão, o juiz citou o pastor luterano Martin Niemöller e a violência da Alemanha nazista, em 1933, o poeta brasileiro Eduardo Alves da Costa e seu 'No Caminho com Maiakóvski' e uma manifestação de Bertold Brecht.

Na visão do magistrado, 'o Estado brasileiro tem atuado como um monstro, que segue espalhando desgraça e terror por entre o povo que prometeu cuidar'.

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"Parece que a sociedade foi abandonada pelo Estado e, a pretexto de fazer justiça, vai retirando do convívio um a um os seus membros, destruindo-os e piorando-os, para voltar ao convívio mais perigoso e rejeitado em relação ao momento que entrou. Ironicamente, a sociedade cobra o sangue dos seus próprios filhos, mas não exige a eficiência dos serviços públicos, a moralidade de seus administradores, não busca a realização de ações de respeito e promoção da dignidade humana, como se não fosse possível", anotou.

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O magistrado determinou sete medidas 'em harmonia com o parecer do Ministério Público':

I - Com fundamento no artigo 149 do código de processo penal, determino a instauração do incidente de sanidade mental do reeducando, devendo o mesmo ser submetido a exame médico legal. II - Determino a suspensão do processo de execução penal, até ulterior decisão; III - Com fundamento no artigo 149, § 2º do código de processo penal, nomeio o advogado Bernardino Cosobeck da Costa a curador especial do reeducando. IV - Determino a autuação do incidente insanidade mental, em processo apartado, expedindo-se os expedientes necessários, juntando-se cópia desta decisão. V - após autuação, vistas dos autos ao Defensor e ao Ministério Público para, no prazo de 10 dias, formular os quesitos que entender pertinentes. VI - Com fundamento no artigo 1º, III da Constituição Federal, defiro ao reeducando Vanderley Duvirgem os beneficio da prisão domiciliar, devendo o mesmo comparecer para receber atendimento ao CAPS, até decisão final no processo de incidente de insanidade mental, devendo ser encaminhados relatórios mensais. VII - Expeça-se o competente alvará de soltura e cientifique a diretoria da cadeia local.

AS REFERÊNCIAS DO MAGISTRADO:

- Martin Niemöller, pastor luterano, sobre a violência praticada pela Alemanha nazista, em 1933:

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Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar.

- Na década de 1960, o poeta brasileiro Eduardo Alves da Costa escreveu o poema 'No caminho com Maiakóvski':

"[...] Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. [...]"

- Bertold Brecht (1898-1956):

Primeiro levaram os negros, Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários, mas não me importei com isso Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis, Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados, Mas como tenho meu emprego também não me importei. Agora estão me levando, mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, Ninguém se importa comigo.

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