Alexandre Langaro*
11 de janeiro de 2020 | 06h10
Alexandre Langaro. Foto: Arquivo Pessoal
A Lei 13.964/19 traz como suposta novidade a ‘criação’ do ‘juiz das garantias’.
A palavra correta, todavia, é juízo [1], que tem maior rigor técnico, e não ‘juiz’ das garantias.
Nesse sentido, esse ‘juízo de garantia’ significa, sinteticamente, atividade limitadora, repressiva, controladora, refreadora do poder punitivo, exercida para materializar – e sobretudo para promover –, no mundo da vida, o postulado da dignidade da pessoa humana. O que se faz mediante a aplicação – em todas as fases da persecução penal –, das liberdades individuais e dos direitos fundamentais, por meio das garantias processuais. Isso tudo decorre da racionalidade, inerente ao postulado republicano, expressamente descrito no art. 1º, caput, CF:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […]
‘Garantias’ também é uma palavra – e o destaque é imprescindível – que pode restringir o sentido e o alcance das liberdades individuais, dos direitos fundamentais e das garantias processuais [em sentido estrito].
Importa mencionar, assim, que o vocábulo garantia tem natureza instrumental, ou processual, se se preferir. E é por meio dos instrumentos processuais – especialmente os de natureza constitucional, por exemplo, habeas corpus, mandado de segurança, dentre outros –, que se realizam, na ordem ôntica [real], os direitos fundamentais e as liberdades individuais. As garantias – como veículos ou meios –, propiciam, portanto, o impulsionamento – e a ênfase, nesse ponto, é essencial – do ser em direção ao dever ser. [2]
Decerto – e esse registro também é fundamental –, para quem entende que a lei penal é constituída por cláusulas pétreas e por preceitos emanados do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a Lei 13.964/19, no ponto, pouquíssimo ou quase nada inovou, no sistema do ordenamento jurídico brasileiro. Ao contrário, portanto, do que propalado – um disparate rematado.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão [França 1789], diz o seguinte:
Artigo 8º – A Lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada.
Artigo 9º – Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei. [Grifos aditados]
O ‘juiz das garantias’, existe – de maneira inominada [mas não tímida] e formalmente – no Direio Penal e Processual Penal brasileiro, desde o Decreto de 23 de maio de 1823:
E sendo do Meu primeiro dever, e desempenho de Minha palavra o promover o mais austero respeito à Lei, e antecipar quanto ser possa os beneficios de uma Constituição liveral: Hei por bem excitar, por a maneira mais efficaz e rigorosa, a observancia da sobre mencionada legislação, ampliando-a, e ordenando, como por este Decreto Ordeno, que desde a sua data em diante nenhuma pessoa livre no Brazil possa jamais ser presa sem ordem por escripto do Juiz, ou Magistrado Criminal do territorio, excepto sómente o caso de flagrante delicto, em que qualquer do povo deve prender o delinquente. Ordeno em segundo logar, que nenhum Juiz ou Magistrado Criminal possa expedir ordem de prisão sem preceder culpa formada por inquirição summaria de tres testemunhas, duas das quaes jurem contestes assim o facto, que em Lei expressa seja declarado culposo, como a designação individual do culpado; escrevendo sempre sentença interlocutoria que o obrigues a prisão e livramento, a qual se guardará em segredo até que possa verificar-se a prisão do que assim tiver sido pronunciado delinquente. determino em terceiro logar que, quando se acharem presos os que assim forem indicados criminosos se lhes faça immediata, e successivamente o processo, que deve findar dentro de 48 horas peremptorias, improrrogaveis, e contadas do momento da prisão, principiando-se, sempre que possa ser, por a confrontação dos réos com as testemunhas que os culparam, e ficando alertas, e publicas todas as provas, que houverem, para assim facilitar os meios de justa defesa, que a ninguem se devem difficultar, ou tolher, exceptuando-se por ora das disposições deste paragrapho os casos, que provados, merecerem por as Leis do Reino pena de morte, acerca dos quases se procederá infallivelmente nos termos dos §§ 1º e 2º do Alvará de 31 de março de 1742. Ordeno em quarto logar que, em caso nenhum possa alguem ser lançado em segredo, ou masmorra estreita, ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas, e nunca para adoecer e flagellar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões, e outros quesquer ferros inventados para martyrisar homens ainda não julgados a soffrer qualquer pena afflictiva por sentença final; entendendo-se todavia que os Juizes, e Magistrados Criminaes poderão conservar por algum tempo, em casos gravissimos, incomunicaveis os delinquentes, contanto que seja e casa arejadas e commodas, e nunca manietados, ou soffrendo qualquer especie de tormento. Determino finalmente que a contravenção, legalmente provada, das disposições do presente Decreto, seja irremissivelmente punida com o perdimento do emprego, e inhabilidade perpetua para qualquer outro, em que haja exercicio de jusrisdicção. [Sic, 4]
A partir do ano de 1942 – quando o Código de Processo Penal, o Decreto-Lei 3.689/1941, inspirado no modelo italiano do Código do ministro Alfredo Rocco [3] –, começou a vigorar no país, o instituto do Habeas Corpus foi regulamentado mais detalhadamente
O Habeas Corpus, nessa época, tinha natureza recursal. [5]
O ‘juíz das garantias’, previsto expressamente no art. 654, II, CPP/41, dizia – e diz – o seguinte:
Art. 654. O habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), documento de Direito Internacional dos Direitos Humanos, de 10/12/1948, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, em 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução 217 A (III), da Assembleia Geral [6], previu expressamente a existência do ‘juiz das garantias’ – arts. 8º a 12º – nos seguintes termos:
Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.
Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.
Artigo 11°
Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.
A partir de 5/10/1988, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, o instituto do ‘juiz das garantias’ tomou mais corpo, forma e ‘coragem’.
Nessa mesma linha de entendimento, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto 592/1992, no art. 14, destaca, dentre outros direitos humanos, os seguintes:
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado pelo Decreto 4.388/2002, estabelece, nos seus arts. 64, 66 e 67, diversos direitos humanos, a saber:
Artigo 64
Funções e Poderes do Juízo de Julgamento em Primeira Instância
[…]
Artigo 66
Presunção de Inocência
Artigo 67
Direitos do Acusado
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos [Pacto de São José da Costa Rica], de 22/11/1969, promulgada pelo Decreto 678/1992, estabelece, entre outros, os seguintes direitos, inatos à pessoa humana:
ARTIGO 7
Direito à Liberdade Pessoal
ARTIGO 8
Garantias Judiciais
Desses preceitos de Direitos Constitucional e de Direito Internacional dos Direitos Humanos – e não da Lei 13.964/2019 –, desde sempre extraiu-se, por conseguinte, das vertentes do devido processo legal, do juízo natural, da presunção de inocência, do contraditório [ou fogo-cruzado], da plenitude da defesa e da ampla defesa, por exemplo, dentre outras – como desdobramento lógico, necessário e racional, insista-se, do postulado do Estado Democrático de Direito, que têm a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos –, a fortíssima existência de um órgão integrante do Poder Judiciário [o agora denominado ‘juízo das garantias’, como atividade de limitação e de contenção do poder punitivo], com competência para balizar e determinar o cumprimento, por parte dos Poderes Legislativo e Executivo, dos valores e dos direitos fundamentais, consagrados pelos documentos políticos internos e internacionais.
A exemplo do que ocorre, desde o ano de 1985, no Estado de São Paulo, no DIPO – o Departamento Técnico de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária.[7]
No DIPO, contudo, correta e diferentemente do que acontece com a Lei 13.964/19, o ‘juiz das garantias’, que supervisionou e controlou os atos administrativos, praticados no inquérito policial, não pode decidir acerca do recebimento da denúncia. Na Lei 13.964/19, entretanto, ocorre – incorretamente –, o oposto:
Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código.
Vale revelar ainda que o art. 13 da Lei 13.964/2019 – que faculta a instalação de Varas Criminais Colegiadas – atribuiu a esses órgãos colegiados de primeiro grau, competência para todos os atos jurisdicionais no decorrer da investigação, da ação penal e da execução da pena, inclusive a transferência do preso para estabelecimento prisional de segurança máxima ou para regime disciplinar diferenciado. [8]
Ou seja, de acordo com a terminologia legal [Lei 13.964/19], esse colegiado, então, exercerá as competências do ‘juízo das garantias’ e também as do ‘juízo da instrução’. Tal e como ocorre atualmente. Isso significa que as liberdades individuais, os direitos fundamentais e as garantias processuais, nesses casos específicos, desapareceram? Por óbvio que não!
Aí está a evidência de que não há a tão alardeada ‘novidade’, que, de novo, praticamente, nada tem. Inclusive no tocante à estrutura acusatória do processo penal [art. 3º-A da Lei 13.984/2019], dado que já prevista, expressa e anteriormente, no art. 129, I, CF [9]. O que existe, sim, é o mau vezo de se interpretar a Constituição Federal de acordo com a Lei Ordinária. Para esses guardiões das leis federais sempre haverá a necessidade de os direitos, inerentes à pessoa humana, serem positivados, via leis federais, sob pena de inexistência, invalidade e ineficáia.
Contudo, o Direito Penal Garantista – que se funda [vale repetir] nas normas constitucionais e no Direito Internacional dos Direitos Humanos –, limitador do poder punitivo –, evoluiu, desde o ano de 1789, especialmente, para que os seres humanos, que nascem livres e iguais em dignidade e direitos [art. 1º, DUDH], possam ser reconhecidos [e tratados!], em todos os lugares, como pessoas perante a lei [art. 6º, DUDH].
Merece abordagem, ainda que, por ora, superficial, o tema previsto no art. 2º da Lei 13.964/19, que modificou o art. 75 do Código Penal:
Art. 2º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 75. O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 40 (quarenta) anos. [Não há grifo no original]
O preceito inscrito no art. 2º da Lei 13.964/19, acima descrito, ao aumentar de trinta para quarenta anos o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade, violou, de maneira ostensiva, frontal, manifesta e direta, o art. 77, I, a, do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que diz o seguinte:
Na Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[1] Arts. 37, caput, CF, 3º, CPP e 319, I, CPC].
[3]https://en.wikipedia.org/wiki/Alfredo_Rocco.
Art. 810. Este Código entrará em vigor no dia 1o de janeiro de 1942. [CPP]
[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/historicos/dim/DIM-23-5-1821.htm
[5] Título II, Capítulo X, CPP.
[6] https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/
[7] Provimento 233/1985 do Conselho Superior da Magistratura do TJ/SP.
Resolução 11/1985, TJ/SP.
Lei Complementar [SP] 1.208/2013.
[8] Art. 13. A , passa a vigorar acrescida do seguinte art. 1º-A:
“Art. 1º-A. Os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais poderão instalar, nas comarcas sedes de Circunscrição ou Seção Judiciária, mediante resolução, Varas Criminais Colegiadas com competência para o processo e julgamento:
I – de crimes de pertinência a organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição;
II – do crime do art. 288-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e
III – das infrações penais conexas aos crimes a que se referem os incisos I e II do caput deste artigo.
[9] Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.[Grifado por conta]
*Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova York
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.