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Jacarezinho: ainda há muito a ser revelado

*Atualizado às 15h desta segunda-feira, 28, para manifestação do Ministério Público do Rio

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Por Camila Austregesilo Vargas do Amaral e Felício Nogueira Costa
Atualização:

Corpos feridos à bala estatelados no chão. Granadas deixadas para trás, mais de vinte armas apreendidas. Moradores transmitiram nas redes sociais as imagens das ruelas e casas cravadas por marcas de centenas de projéteis, enquanto manchas de sangue escorriam e ressecavam, após a operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro na comunidade do Jacarezinho no último mês de maio. Esse foi o saldo da operação, que inicialmente buscava cumprir 21 mandados de prisão, mas que prendeu ao menos outras 10 pessoas, feriu mais cinco e acabou com a morte de um policial e outros 27 suspeitos, uma cifra indicativa de massacre.

Os advogados Felício Nogueira Costa e Camila Austregesilo Vargas do Amaral. Foto: Divulgação

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A notícia do momento é que os laudos do Instituto Médico Legal revelaram que quatro dos suspeitos foram atingidos apenas com tiros pelas costas, enquanto um outro homem teria sido atingido à queima-roupa, ambos indicativos de execuções sumárias. Isso é o que a imprensa conseguiu levantar após mais de um mês depois dos fatos, apesar do sigilo de cinco anos imposto às operações realizadas no Rio de Janeiro. Se esse preocupante dado relativo à violência policial vem à tona, imagine o que mais ainda está sendo mantido em segredo?

"Não sei se as grandes operações dão resultado. O que eu sei é que a falta de operação dá um péssimo resultado". A afirmação de um dos delegados envolvidos na chamada Operação Exceptis é a maior demonstração da absoluta falta de rumos da política atual no combate ao tráfico de drogas. A repressão violenta e a condenação sumária à morte são conhecidas fórmulas padrão na tentativa de debelar a criminalidade, recurso que o Estado reserva para a repressão de crimes ligados a bairros periféricos - nunca aqueles de classe alta -, mas que ele próprio sabe ser um método ineficaz.

Conforme estudo realizado pelo Centro de Pesquisas do Ministério Público do Rio de Janeiro, a letalidade policial não encontra correlação com um combate eficiente à criminalidade. Incursões em favelas tendem a ser menos efetivas que "ações preventivas como o patrulhamento de manchas criminais, que prioriza o policiamento ostensivo em áreas onde o crime ocorre (e não onde supostamente está o criminoso)". Triste ainda constatar que não se hesitou em derramar tanto sangue para apreender seis fuzis e outras armas numa favela, enquanto operação realizada há poucos anos apreendeu mais de uma centena de fuzis em bairro de classe média alta sem derramar uma gota de sangue, fazendo uso de inteligência policial.

A operação realizada no Jacarezinho não foi episódio isolado, dadas as diversas incursões policiais que sempre foram o cotidiano das favelas cariocas. Tão comuns, foram até mesmo alvo de decisões no âmbito de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de relatoria do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, que determinou não fossem realizadas operações em comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do Covid-19, salvo em situações excepcionais, para não colocar em risco ainda maior a população em um contexto de imensa fragilidade.

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A determinação contrasta com as notícias estampadas nos jornais. Após a operação ter se revelado uma das mais sanguinolentas da história do Rio de Janeiro, mais números surgem e chocam. A cifra de mortes em confronto com a polícia no Estado do Rio de Janeiro é de 20.957, número contabilizado desde 1998. São 873 fatalidades por ano, uma a cada 10 horas, dados que apontam ainda que o primeiro trimestre de 2021 foi o mais letal desde o início do registro histórico.

"Tudo bandido" foi a fala do vice-Presidente da República Hamilton Mourão, a revelar que as lideranças da nação encaram com naturalidade uma abordagem tão brutal, como se o argumento preconceituoso significasse carta branca para tamanha violência e desprezo pela Lei. A política de armamento da população brasileira instaurada desde o último governo, de fato, não milita a favor da diminuição da violência. Segundo fontes oficiais, 179.771 novas armas foram autorizadas pela Polícia Federal somente no ano de 2020, o que representou um aumento de 91% em relação ao ano anterior, indicativo de que a belicosidade na sociedade brasileira tende apenas a aumentar.

"Os 24 mortos, 24 criminosos mortos, diga-se de passagem, porque não tem nenhum suspeito aqui, a gente tem é criminoso, bandido, traficante e homicida porque eles tentaram matar os policiais". Essa foi outra declaração de um dos delegados presentes na coletiva de imprensa realizada no dia dos fatos, quando sequer se sabia o total de mortos. A fala choca pela sumariedade da condenação imposta aos supostos criminosos e revela o descompasso entre a atividade da polícia e o modelo legal de apuração de crimes.

A investigação de delitos não pode ser um vale-tudo, nem mesmo se a apuração dissesse respeito às "práticas como o tráfico de drogas, roubo de cargas, assaltos a pedestres, homicídios e sequestros de trens da SuperVia, dentre outros crimes praticados na região", conforme informado pela Polícia, embora o relatório de inteligência não fizesse menção à apuração de todos esses crimes.

Além de inexistir no ordenamento a pena de morte, certo é que as condenações e a devida punição somente poderão ser alcançadas após o devido processo legal que apure responsabilidades perante um juiz imparcial.

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Cabe notar que a legítima defesa é, sim, recurso excepcional previsto em lei por meio do qual o indivíduo - seja ele policial ou não - pode reagir à injusta agressão empregando meios moderados e necessários. O contra-ataque de sujeitos armados no Jacarezinho até poderia legitimar uma reação policial, o que não parece ter sido o caso diante dos diversos relatos de execuções sumárias e da ausência de explicação detalhada pelas autoridades das circunstâncias que teriam levado àquela barbaridade. De fato, é difícil imaginar que todas as 27 mortes de suspeitos tenham ocorrido no contexto de resposta proporcional a uma agressão efetiva e atual - única hipótese em que a escusa da legítima defesa é aplicável.

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Para operações como essa e outras, os Tribunais brasileiros já têm apontado soluções em conformidade com a lei. O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento no último mês de março de habeas corpus de relatoria do ministro Rogério Schietti, decidiu em matéria de buscas e apreensões que a "a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo". A exigência busca assegurar a legalidade da execução da medida em si, bem como proteger o próprio executor dos mandados judiciais, registrando os fatos que comprovarão a situação de legítima defesa que porventura se apresente. A Corte já comunicou o Ministério da Justiça e Segurança Pública, bem como os governadores dos Estados e do Distrito Federal, para que aparelhem as polícias e evitem ilegalidades na execução de medidas judiciais que poderiam levar à responsabilização administrativa, civil e penal dos agentes estatais responsáveis.

No caso de Jacarezinho, o leite já foi derramado. Organizações de direitos humanos colheram evidências de abusos, bem como de alteração da cena dos fatos, todas denúncias que não podem deixar de ser apuradas tal qual noutras vezes em que o Brasil restou até mesmo condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2017, por não investigar devidamente as circunstâncias de chacina decorrente de operação policial.

A Polícia Civil, por sua vez, tardou em prover informações sobre os suspeitos e as circunstâncias de suas mortes, atraso provavelmente devido ao fato de ter sido ela própria colocada sob a suspeita de abuso e violência. Preocupa que, ao invés de concentrar-se na apuração de abusos por parte de seus membros, a Polícia Civil tenha recentemente voltado suas energias para instaurar inquérito a fim de investigar jornalista autor de reportagens sobre a operação do Jacarezinho numa completa subversão de valores.

O Ministério Público do Rio de Janeiro - que bem sabia da operação que se realizaria, pois a mídia reporta que ele próprio havia peticionado em prol das medidas invasivas - passou a sofrer pressão até mesmo da ONU e já anunciou a abertura de um Procedimento de Investigação Criminal para apuração independente dos excessos denunciados.

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As apurações são necessárias e há muito o que ser investigado. Mas, além do aprofundamento das investigações e da responsabilização dos autores dos delitos, é preciso repensar o modelo brasileiro de combate ao crime em todos os escalões, levando em conta que é melhor prevenir de forma inteligente do que tentar remediar por meio de puro derramamento de sangue.

*Camila Austregesilo Vargas do Amaral, advogada criminalista, especialista em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, sócia do escritório Rahal, Carnelós, Vargas do Amaral Advogados.

*Felício Nogueira Costa, mestre em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e autor do livro Pena Privativa de Liberdade Decorrente de Colaboração Premiada, advogado do escritório Rahal, Carnelós, Vargas do Amaral Advogados

COM A PALAVRA, O MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO DE JANEIRO

"O MPRJ esclarece que instaurou procedimento de investigação criminal próprio, tão logo comunicado dos fatos. Além disso, atendendo-se às normativas emanadas por organismos internacionais, disponibilizouequipe de peritos para acompanhar os serviços realizados pelo Estado, no dia do fato, além de disponibilizar canal institucional para recebimento de comunicações e denúncias.

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O MPRJ reafirma que, no exercício das funções que constitucionalmente lhe são conferidas, adotará todas as medidas cabíveis para o regular desempenho de suas atribuições, quer seja no exercício finalístico da ação penal pública em relação a eventuais ilícitos penais praticados, na defesa dos Direitos Humanos dos cidadãos envolvidos e no efetivo exercício do controle da atividade externa, participando ativamente das políticas de Segurança Pública de nosso Estado."

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