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Intervenção do Estado na propriedade para utilização compulsória de leitos nos termos do PL 2324/2020

Por Cecilia Mello e Maria Amélia Campos Ferreira
Atualização:
Cecilia Mello e Maria Amélia Campos Ferreira. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A elevada taxa de contágio da população pelo coronavírus, com a consequente necessidade de numerosas internações hospitalares, vem ocasionando o colapso dos sistemas de saúde pelo mundo. No Brasil, essa realidade já se evidencia em algumas cidades com a completa lotação de hospitais públicos.

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Corolário dessa situação é o Projeto de Lei 2.324/2020, de autoria do senador Rogério Carvalho e outros, em trâmite no Congresso, que objetiva regulamentar a utilização compulsória de leitos de propriedade privada, alterando a Lei 13.979/2020, especificamente o seu art. 3º. Apesar de o texto da proposta inicial não falar em requisição administrativa, na justificativa do PL apresenta-se, como fundamento da utilização compulsória, o instituto previsto no art. 5º, inciso XXV, da Constituição e no art. 15, inciso XIII, da Lei 8.080/1990.

Há aspectos importantes do projeto para garantir a racionalidade na hipótese de utilização, pelo Poder Público, de bens e serviços privados no contexto de pandemia.

Primeiro ponto é a imposição da obrigação a entidades privadas de saúde de fornecerem informações sobre a quantidade de leitos em suas dependências, bem como respectiva ocupação, além da quantidade de ventiladores pulmonares. Também deverá constar informação sobre leitos e equipamentos que já estão sendo usados para o tratamento da covid-19. Esse panorama é essencial para que o administrador público possa decidir acerca da requisição e de suas proporções.

Na proposta, a possibilidade de utilização de leitos disponíveis para tratamento de pacientes acometidos de Síndrome Respiratória Aguda Grave- SRAG ou com suspeita ou diagnóstico da covid-19 apenas é aplicável quando a taxa de ocupação do estabelecimento privado for inferior a 85%.

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 Reforçando a ideia de subsidiariedade da requisição compulsória, o texto foi alterado por meio de emenda para estabelecer a obrigatoriedade de prévia realização de chamamento público para fins de contratação emergencial, devendo constar do respectivo edital, no mínimo,  quantidade e prazo de utilização dos leitos e valores de referência, baseados em cotação prévia de preços de mercado.

Outro ponto importante do projeto é que caberá aos gestores estaduais, na Comissão Intergestores Bipartite (CIB), estabelecer, com base na demanda e necessidades dos entes federativos, a distribuição de leitos públicos e a utilização compulsória dos leitos privados disponíveis. Dessa forma, decisões relativas à distribuição de leitos públicos e utilização compulsória de leitos privados cabe à CIB, e não ao chefe do poder executivo estadual ou municipal, ou aos seus secretários de saúde.

A CIB juntamente com a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), é um foro de negociação e pactuação entre gestores, quanto a aspectos operacionais do SUS. Sendo uma comissão bipartite, composta paritariamente por representantes estaduais e municipais tem como finalidade assegurar a melhor utilização dos leitos públicos e privados, por meio de uma gestão integrada, e garantir que Estados e Municípios decidam em conjunto sobre a necessidade de utilização compulsória dos leitos privados.

Outro aspecto que merece destaque é a determinação no sentido de que a justa indenização terá como referência valores apontados em ato do Ministério da Saúde ou em determinação da CIB, devendo haver prévia cotação de preços no mercado, tal qual a determinação para o chamamento público antecedente.

Nos termos da propositura, a União poderá destinar recursos para o financiamento dos custos dessa utilização compulsória ou contratação emergencial, por meio de transferência obrigatória de recursos do Fundo Nacional de Saúde aos fundos estaduais ou municipais, sob a modalidade de recursos adicionais ao mínimo obrigatório previsto na Constituição.

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Um ponto que pode gerar controvérsia na proposição legislativa que seguiu para Câmara dos Deputados para votação é a inclusão do §21 no art. 3º da Lei 13.979/2020. O projeto inicial previu o uso público de leitos privados, com fundamento na requisição administrativa, conforme previsão constitucional e legal. Entretanto, houve apresentação de emenda, acatada, para incluir o §21 no art. 3º da Lei 13.979/2020. Entendeu-se que, como a requisição administrativa já está disciplinada na legislação, nos termos da Lei 8.080/1990 e da própria Lei 13.979/2020, a utilização compulsória seria uma inovação. O relator do projeto, senador Humberto Costa, sustentou que a proposta visa dar maior segurança ao gestor público, evitando que os leitos privados sejam utilizados de maneira desordenada.

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Nesse sentido, o PL 2324/2020 traz três formas diferenciadas de utilização dos leitos privados pelo setor público: "a) contratação emergencial; b) utilização compulsória dos leitos, na qual os leitos ficam sujeitos à regulação pública, mas seguem sob administração do setor privado; c) requisição administrativa, nos termos da Lei 8080/1990 e Lei 13.979/2019, na qual os leitos privados passam a ser administrados pelo setor público".

A utilização compulsória prevista no PL 2324, sob a ótica dos seus autores, não se confunde com a requisição administrativa, mas trataria de um novo instituto, delineado na proposição para o enfrentamento da pandemia.

A opção legislativa da utilização compulsória possui, todavia, características que são próprias da requisição administrativa. Pode-se afirmar, inclusive, que a utilização compulsória é modalidade da requisição administrativa. É um ato unilateral da Administração Pública, sem a necessidade de concordância do particular. Ao contrário, a sua inobservância pelo particular será considerada infração sanitária, nos termos da Lei 6.437/1977. É ato discricionário, que dependerá de conveniência e oportunidade, mas que deverá ser deliberado e decidido entre os gestores da CIB. Além disso, é ato autoexecutório, bastando a sua comunicação ao hospital, conforme a disciplina determinada pela CIB.

 O fato de o referido projeto prever a necessidade de chamamento público para contratação emergencial como medida anterior à utilização compulsória dos leitos, não é elemento diferenciador desta em relação à requisição administrativa. Essa obrigatoriedade da prévia tentativa de solução consensual, não é incompatível com a requisição administrativa, mesmo diante da necessidade de rápida obtenção de recursos para enfrentar o perigo público iminente.

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Isto porque é recorrente na doutrina o entendimento de que a requisição administrativa deve ser utilizada como último recurso, por acarretar a intervenção do Estado na propriedade privada, direito fundamental garantido no art. 5°, inciso XXII, da CF/88.

Sob o enfoque da justa indenização, o projeto não estabelece o momento da sua efetivação, diferentemente da requisição administrativa que conta com expressa previsão de indenização a posteriori. Embora haja previsão de parâmetros para a fixação de valores, não há estipulação quanto ao momento do pagamento. Entretanto, a ausência dessa previsão  não parece ser suficiente para descaracterizar o instituto da requisição administrativa, pois o texto fala em justa indenização e, mesmo que se decida pelo pagamento prévio, eventuais danos sofridos pelo particular que ultrapassem os limites e valores estabelecidos inicialmente, poderão , em princípio, ser demandados do Poder Público.

O PL pode sugerir a criação de um novo instituto. Contudo, como implicação, teríamos a hipótese de criação de uma nova forma de intervenção do Poder Público na propriedade privada por norma infraconstitucional, ocasionando inúmeras discussões acerca da sua constitucionalidade.

A opção legislativa com o texto que se apresenta até o momento, pode ser interpretada como criação de um novo instituto jurídico, como mais uma medida de enfrentamento à crise sanitária. No entanto, é de se notar que a utilização compulsória de leitos privados possui características essencialmente coincidentes com a requisição administrativa e, por esse motivo, em uma primeira análise, parece estar inserida na previsão do art. 5º, inciso XXII, da CF/88. Ou seja, é possível e parece razoável sustentar que a utilização compulsória é modalidade da requisição administrativa, em que se requisita o uso do bem ou serviço, mas não a disponibilidade para operá-lo diretamente.

 Resta-nos aguardar o tratamento que será dado pela Câmara dos Deputados ao projeto de lei.

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*Cecilia Mello, advogada, sócia do Cecilia Mello Advogados, desembargadora federal aposentada

*Maria Amélia Campos Ferreira, advogada do Cecilia Mello Advogados

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