Aylton Gonçalves*
03 de abril de 2022 | 05h00
Aylton Gonçalves. FOTO: DIVULGAÇÃO
A figura jurídica das instituições de pagamento (IPs) é relativamente nova. Apenas no próximo ano, completará 10 (dez) anos desde que foi promulgada a Lei nº 12.865, de 09 de outubro de 2013 (Lei de Meios de Pagamentos), a qual definiu as IPs como pessoas jurídicas que, integrando um ou mais arranjos de pagamento (também conhecidos como “bandeiras”(1)) realizem, como atividade principal ou acessória, alternativa ou cumulativamente, alguma das prestações de serviços descritas no art. 5º da norma, como emissão de instrumentos de pagamento (cartões de débito e crédito), credenciamento e aceitação de instrumentos de pagamentos (como fazem as “maquininhas”) e execução de remessa de fundos. (2)
Em menos de uma década, as IPs passaram a representar relevante fatia do mercado de cartões, proporcionando, de um lado, concorrência a players já estabelecidos e, de outro, diminuição de preços aos consumidores de serviços financeiros, os quais rapidamente implementaram o uso das contas de pagamento em suas rotinas.
Nessa mesma linha, o Relatório de Economia Bancária de 2020, publicado pelo Banco Central do Brasil (BCB) no dia 31 de agosto de 2021, indicou que o número de instrumentos pós-pagos (como cartões de crédito) ativos das IPs não ligadas/controladas por instituições financeiras do S1 (3) mais que dobrou em 2019 e representou 10% (dez por cento) de todo o Sistema Financeiro Nacional (SFN), atingindo R$ 58 bilhões em valores de transações.
Quanto aos instrumentos pré-pagos (como cartões de débito), o número de ativos representou aproximadamente metade de todos os ativos do SFN nessa categoria em 2019, movimentando quase R$20 bilhões.
É interessante notar que o fomento à competição e à inovação está na gênese das instituições de pagamento. Isso porque a Lei de Meios de Pagamentos foi fruto principalmente de dois estudos, quais sejam o “Diagnóstico do Sistema de Pagamentos de Varejo do Brasil”, de 2006, e o “Relatório sobre a Indústria de Cartões de Pagamento”, de 2010. Esses dois documentos apontavam destacadamente a concentração do mercado de meios de pagamento, o que foi refletido na Exposição de Motivos da MPV nº 615/2013, posteriormente convertida na Lei nº 12.865/2013 (4).
Ao longo dos últimos anos, a regulação bancária e de pagamentos, emitida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pelo BCB, adequou-se a avanços sociais, econômicos e tecnológicos, tendo ainda maior destaque no biênio 2020-2022, período de publicação, por exemplo, da (i) Resolução Conjunta CMN-BC nº 01/2020 (open banking), (ii) Resolução BCB nº 01/2020 (arranjo de pagamentos Pix) e (iii) Resolução CMN nº 4.865/2020 e Resolução BCB nº 29/2020 (sandbox regulatório).
Especificamente quanto aos meios de pagamento, destaca-se a publicação das Resoluções BCB nº 80/2021, 81/2021 e 103/2021, quanto às IPs, e a Resolução BCB nº 150/2021, sobre o funcionamento de arranjos de pagamento.
Mas o que esperar de 2022? Certamente este ano apresentará novos modelos de negócios e consolidará modelos já em funcionamento. Abaixo, alguns dos mais relevantes itens de atenção quanto às instituições de pagamento no ano que se inicia.
Tradicionalmente, o mercado de câmbio foi ocupado por instituições financeiras. Apesar disso, tal qual ensinado por Eduardo Salomão Neto, o contrato de câmbio tem natureza de compra e venda mercantil, não se adequando, portanto, às atividades privativas de instituições financeiras (5), que têm como elemento distintivo a captação e a aplicação de recursos voltadas à geração de crédito (6).
Notando a lacuna legal, e, preponderantemente, com foco na competitividade e inclusão no mercado financeiro — pilares da agenda institucional BC# (7) — CMN e BCB publicaram, no ano de 2021, as Resoluções CMN nº 4.942/2021, BCB nº 137/2021 e nº 148/2021, facultando às IPs que requeiram, em pedido submetido ao BCB, a possibilidade de operarem no mercado de câmbio, a partir do dia 1º de outubro de 2022 (8).
Corroborando com o movimento iniciado no âmbito da autoridade reguladora, o Governo Federal sancionou o texto do Projeto de Lei nº 5.387/2019, de autoria da Câmara dos Deputados, transformando-o na Lei nº 14.286/2021 (Marco Legal do Câmbio). Nos termos da nova lei, que unifica a outrora esparsa legislação cambial, cabe ao BCB a determinação das instituições que podem operar no mercado de câmbio (arts. 3º e 5º), sem qualquer restrição a sociedades não autorizadas a funcionar como instituições financeiras.
As alterações na regulação e na legislação de câmbio terão o condão de aumentar a tração de IPs em 2022. A partir de outubro, clientes de instituições de pagamento, os quais já contam com serviços simplificados e technology-based, poderão solicitar compra de moeda estrangeira com um clique em seu app favorito. Certamente, projetos arrojados e disruptivos surgirão (e já estão surgindo) disso.
Estudo conjunto realizado pelas consultorias Rainmaking e Finnovista, publicado recentemente, apontou que o addressable market (mercado endereçável) (9) de serviços financeiros embutidos, como em banking-as-a-service (BaaS) ou payments-as-a-service (PaaS), nos próximos anos, terá valor equivalente a US$ 7 trilhões ou ao dobro dos 30 (trinta) maiores bancos do mundo.
Ao encontro desse dado, Angela Strange, sócia fundadora do fundo de capital de risco Andreessen Horowitz e ex-gerente de negócios da Google, responsável pelo lançamento e divulgação do Google Chrome para aparelhos celulares com sistemas Android e IOS, tem defendido que, em um futuro próximo, quase todas as sociedades empresárias terão parcela significativa de sua receita obtida por meio da prestação de serviços financeiros, via compartilhamento de infraestruturas tecnológicas.
Muito embora o conceito de PaaS pareça novo e complexo, a sua fonte de inspiração é bastante conhecida na sociedade brasileira: o software-as-a-service (SaaS).
Como explica Bruno Diniz, grandes nomes do mundo da tecnologia, com atuação bastante difundida, tais quais Netflix, Amazon e Microsoft, valem-se de soluções de SaaS para, em vez de possibilitar somente a utilização de seus softwares via instalação do programa em um computador, fornecer serviço no qual o cliente “paga uma assinatura para utilizar por um determinado período, ou paga conforme o consumo (variando de acordo com a frequência de uso”) (10). É com uma solução SaaS que, por exemplo, faz-se a venda dos aplicativos do Office no plano Microsoft 365.
O modelo de PaaS possui atrativos para os dois lados da relação negocial, quais sejam o fornecedor da infraestrutura de pagamentos, instituição autorizada a funcionar pelo BCB, e a sociedade empresária contratante, que pretende prestar serviços financeiros a seus clientes. Pelo lado do fornecedor, é possível apontar a escalabilidade do negócio, com significativo aumento da penetração social da cesta de produtos ofertados — explicativamente wallets e cartões de crédito — como um dos principais benefícios da parceria.
A sociedade empresária contratante, por sua vez, encontra vantagens como (i) diminuição de tempo de entrada e de teste de produtos no mercado; (ii) diminuição de custos de observância regulatória e operacionais; (iii) diminuição do custo de aquisição de clientes ou “cac”; e (iv) diminuição do custo de fricção.
É relevante notar que as soluções “as-a-service” ainda não foram reguladas pelo Banco Central do Brasil, inexistindo, portanto, vedações jurídico-regulatórias à celebração de contratos com o escopo de PaaS. Isso se dá, em grande medida, em razão de ser a instituição supervisionada quem suportará a carga regulatória, algo que, inclusive, deve ser precificado quando da formalização da parceria.
Devido à grande tração do modelo de negócios de serviços financeiros embutidos (como PaaS), a oferta desses serviços tende a ser um dos mais importantes pontos de atenção para instituições de pagamento em 2022.
Entre os anos de 2010 e 2022, 1 (um) Bitcoin deixou de representar US$ 0,39 (trinta e nove centavos de dólar) para representar aproximadamente US$ 38.760,00 (trinta e oito mil, setecentos e sessenta dólares) (11).
A abrupta valorização de criptoativos, como do Bitcoin, fez despertar interesse de diversos agentes econômicos, principalmente com a expectativa de que esses ativos pudessem ser fonte de investimentos. Por outro lado, a possibilidade de os criptoativos serem utilizados como meio de pagamento, alternativamente a moedas fiduciárias emitidas por Bancos Centrais, também chamou atenção daqueles que observavam o potencial disruptivo de uma forma célere e governamentalmente independente de se operacionalizar negócios domésticos e internacionais (12), aspecto mais atrelado à concepção inicial do Bitcoin.
Não apenas a sociedade civil, mas, destacadamente, as autoridades públicas notaram o relevo dos criptoativos. Os recursos transacionados no contexto da criptoeconomia trouxeram duas principais preocupações: (i) a forma de tributar esses negócios e (ii) a coibição do cometimento de crimes via criptoativos, destacadamente quanto ao estelionato e à lavagem de dinheiro (13).
Especialmente no que atine a este último crime, têm papel relevante as Recomendações do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF) (14), que atualmente tratam também dos provedores de serviços com ativos virtuais (geralmente conhecidos como “exchanges”).
A Nota Interpretativa da Recomendação nº 15 do GAFI/FATF (15) estabelece que as exchanges devem obter licença para funcionar ou, ao menos, serem registradas. O governo brasileiro, que atualmente está em processo de adesão à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (16) e que será avaliado pelo GAFI/FATF em 2022, deve estar atento às recomendações do órgão intragovernamental de lavagem de dinheiro.
Tendo isso em vista, os projetos legislativos sobre criptoeconomia com trâmite mais avançado (PL nº 2303/2015 e PL nº 3825/2019) estabelecem que as instituições autorizadas a funcionar pelo BCB poderão prestar exclusivamente os serviços ligados a criptoativos, ou cumulá-los com outras atividades, na forma da regulamentação a ser posteriormente editada. Enquanto isso, novos entrantes e players não autorizados a funcionar pela autarquia federal terão de requerer licença.
Mesmo na ausência da legislação supradescrita, que ainda necessita passar por crivos dentro dos Poderes Legislativo e Executivo, instituições autorizadas a funcionar pelo BCB, como as IPs, já podem cumular as suas atividades com as de prestadoras de serviços com criptoativos em razão de ausência de proibição legal, com fundamento no princípio constitucional da legalidade aplicado a particulares (17).
Levando-se em conta a constante crescente do mercado de criptoativos e a possibilidade de cumulação dessas atividades com as de IPs (que será, em breve, objeto de lei federal) é de se esperar que um dos mais relevantes modelos de negócios para essas instituições, em 2022, seja o que operacionaliza o encontro entre os serviços cripto com os relacionados aos tradicionais meios de pagamento (como emissão de cartão de débito/crédito e transações com contas de pagamento).
Neste texto, foram endereçadas algumas das mais relevantes possibilidades de negócios para instituições de pagamento em 2022. Gradualmente, apresentar-se-ão soluções envolvendo essas sociedades empresárias no mercado de câmbio, de criptoativos e de serviços financeiros embutidos.
Mais importante que isso: todos esses serviços podem (e possivelmente serão) prestados pelos mesmos players, em atividades empresariais cada vez mais robustas, sofisticadas e competitivas. Não há dúvidas — os objetivos definidos na Exposição de Motivos da Medida Provisória que culminou na Lei nº 12.865/2013 foram alcançados.
*Aylton Gonçalves é associado Sênior da área de Payments, Banking, Fintech & Crypto do Becker, Bruzzi & Lameirão Advogados. Mestrando em Direito pelo IDP. Pós-graduado em Direito Societário (EBRADI), Direito Processual Civil (IDP) e Direito Digital e Proteção de Dados (EBRADI). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Regulação Econômica e Direito Regulatório do IDP – GEDIR/IDP
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